47) Um diretorio de relações internacionais do Brasil: cursos, instituições e redes...
Prefácio
in Clóvis Brigagão (com a assistência de Pedro Spadale e Fernanda Castanheira):
Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes
(Rio de Janeiro: Gramma, 2004, 80 p.; ISBN: 85-988555-02; p. i-vii).
Quando, em 1998, tentei relacionar, pela primeira vez no Brasil, os cursos existentes de graduação e de pós-graduação em relações internacionais, os resultados foram de certo modo surpreendentes, mas ainda assim modestos. Uma tabela que preparei para tal efeito – inserida em meu livro O Estudo das relações internacionais do Brasil (1ª edição: 1999) – listava nove cursos de graduação (stricto sensu) e apenas quatro de pós graduação, entre eles o Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, que apenas recentemente teve confirmado pela CAPES-MEC seu estatuto de “mestrado”. Havia ainda uma dezena de outros cursos de pós-graduação credenciados, possuindo orientação para as relações internacionais, e duas dezenas de cursos de especialização ou de pós-graduação lato sensu, autorizados pela CAPES, que também se dedicavam a esse campo. Este era o campo acadêmico das relações internacionais no Brasil, sem descurar dos muitos cursos de pós-graduação, nas áreas tradicionais de ciências humanas e sociais, como economia, administração e direito, que também formavam mestres ou doutores com teses e dissertações vinculadas de alguma forma a essa temática.
Os números não eram, portanto, reveladores de uma comunidade muito extensa. Um eventual congresso voltado para a temática das relações internacionais, congregando pesquisadores e professores nessa área, talvez não fosse suficiente para encher uma sala de aulas “normal”. O campo era mais promissor pelo lado das instituições ou veículos suscetíveis de comportar informações, análises ou debates sobre questões internacionais: desde o surgimento da Revista Marítima Brasileira (1851) e do Boletim do Clube Naval (1888), bem como das escolas de guerra, com A Defesa Nacional (1913), foram sendo multiplicadas instituições e revistas voltadas para o ensino, a pesquisa e a discussão pública desses temas. Ainda assim, as revistas dedicadas stricto sensu ao campo das relações internacionais eram em número restrito – ainda hoje, elas são basicamente três –, sendo bem mais numerosos os veículos culturais ou de ciências sociais que abrigavam, no sentido lato, materiais relacionados com essa problemática.
Ao tomar conhecimento, em meados de 2004, deste Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004, cuidadosamente preparado pelo Professor Clóvis Brigagão, com a assistência de Pedro Spadale e de Fernanda Castanheira, não pude deixar de constatar, com satisfação, que o campo tinha definitivamente se consolidado no Brasil, com promessa de uma decantação progressiva e uma especialização natural nos próximos anos. Ele registrou, até junho de 2004, a existência de 53 cursos de graduação ativos, com um número aproximado de 13 mil estudantes. O Sudeste, como seria de se esperar, concentra a maior parte desses cursos (56%), mas o Centro-Oeste surge com força, disputando com o Sul o segundo lugar (10 cursos cada um, ou 19% do total). Brasília constitui, obviamente, o elemento predominante na oferta do Centro-Oeste.
A pós-graduação conheceu uma evolução mais moderada, mas ainda assim promissora, na medida em que são atualmente 25 os cursos existentes, sendo dez no conceito stricto sensu e quinze os lato sensu. O Sudeste concentra mais uma vez a maioria (52%), mas o Centro-Oeste (Brasília) vem consolidando, com 7 cursos (ou 28%), sua presença nesse campo. A distribuição pela natureza da instituição – pública ou privada – é reveladora das mesmas caracterísicas que afetam, de maneira geral, o terceiro ciclo no Brasil: a graduação é majoritariamente privada (90%), ao passo que a pós-graduação conhece uma maior presença pública (40%), mas ainda assim é dominada pelas instituições privadas (60%). A evolução futura certamente confirmará essas tendências, muito embora as instituições públicas estejam gradualmente buscando aumentar sua oferta em face da grande demanda registrada nos últimos anos, tanto em termos de graduação como, crescentemente, de cursos de especialização.
O mercado ainda parece funcionar segundo a “lei de Say”, ou seja, a oferta cria a sua própria demanda – daí o maior dinamismo do setor privado –, uma vez que não estão ainda adequadamente consolidados os perfis curriculares dos cursos, os sistemas de avaliação oficial pela CAPES e, sobretudo, a institucionalizaçao profissional nesse campo. Se e quando esse campo lograr constituir uma “massa atômica” suficiente, em termos de produção especializada e de interação entre a formação acadêmica e os requisitos do mercado – o que poderia dar maior visibilidade ao “internacionalista” (reconhecido oficialmente ou não) –, se poderia talvez passar a uma etapa de “superação keynesiana” da lei de Say, isto é, a sustentação da demanda agregada, que por sua vez passa a garantir níveis satisfatórios de oferta de cursos no setor.
Como é conhecido, e esperado, as flutuações do ciclo tenderão a ser produzidas no setor privado e a produção de qualidade tenderá a continuar concentrada no setor público, mas a pós-graduação particular começa a exibir, igualmente, níveis de qualificação acadêmica relativamente satisfatórios. Estrutura e tendências do setor podem ser facilmente resumidas. O “mercado” é suficientemente concorrencial nas grandes capitais, mas frustrantemente cartelizado (ou monopolizado) nas demais regiões e nem sempre a informação quanto à qualidade do ensino – e, portanto, do “produto final” – são provistos com a transparência que os eventuais candidatos a uma formação nessa área desejariam dispor. Como as primeiras turmas estão recém sendo “jogadas” no mercado de trabalho na presente conjuntura, não se pode ainda efetuar uma avaliação adequada da “fiabilidade do material”, bem como de sua adequação aos requisitos do mercado. Algum grau de frustração é inevitável, por parte dos jovens egressos de alguns desses cursos, em relação à sua preparação vis-à-vis o que a demanda existente (e potencial) requer como qualificação profissional.
Essa demanda está atualmente constituída por três blocos desiguais de possíveis contratantes da mão-de-obra especializada produzida nesse campo: o setor público, o mundo acadêmico, ambos relativamente limitados quanto às possibilidades de absorção do número relativamente elevado de graduandos nas fases finais de formação, e o setor privado, enorme e diversificado, mas ainda inseguro quanto à adequação desses jovens internacionalistas aos seus requisitos pragmáticos. No setor público, o grande atrativo é obviamente a diplomacia – extremamente exigente quanto aos critérios de seleção e bastante limitada quanto às possibilidades de entrada –, mas existem outras áreas nas quais o recrutamente é possível (analistas de comércio exterior ou de informações, por exemplo). Na academia, as possibilidades se situam na própria expansão da oferta no setor, voltando-se para uma orientação docente, portanto, o que tende a esgotar-se, talvez, no médio prazo.
A “osmose” entre a academia e a diplomacia não é tão intensa, no Brasil, quanto ela parece ser em outros países de grande tradição nas relações exteriores conduzidas de modo profissional, mas já parece ter sido rompido o relativo “insulamento” em que vivia o serviço diplomático durante a era militar e seu imediato seguimento. “Especialistas” e “assessores” em relações internacionais – inclusive nas mais altas esferas – já não provêm exclusivamente do campo diplomático, tendo a produção própria, ou “importada”, na área política – Parlamento, partidos, centros de pesquisa ou think tanks – crescido significativamente no período recente. O antigo monopólio de idiomas estrangeiros já não mais distingue o diplomata de seus colegas da burocracia de Estado, na medida em que o inglês básico – o raw English – tornou-se a língua franca dos negócios, dos colóquios e das comunicações internacionais.
O campo dotado de maior elasticidade é, inquestionavelmente, o setor privado, terreno no qual as exigências vão além do simples “canudo universitário” e passam a incidir sobre a preparação efetiva – sobretudo em línguas – e a experiência prévia acumulada (o que sempre constitui uma barreira à entrada dos mais jovens). Espera-se, em todo caso, que as instituições de ensino, públicas e privadas, atentem para as exigências específicas da demanda do setor privado, o único em condições de absorver a oferta crescente nessa área. Elas devem atentar para os critérios de formação e de gradual especialização, nos últimos anos, desses novos internacionalistas, que devem, sim, saber os fundamentos da teoria realista em relações internacionais, mas também o modo de funcionamento efetivo das organizações internacionais voltadas para o comércio, as finanças e os padrões e normas que regulam as trocas globais de bens e serviços.
Os fatores impulsionadores do crescimento da oferta em relações internacionais nos últimos anos não são difíceis de serem detectados: a intensificação dos processos de regionalização e de globalização a partir da última década do século XX, a série de crises financeiras dos últimos anos, a expansão dos investimentos diretos estrangeiros nesse mesmo período, a multiplicação de foros negociadores de acesso a mercados, tanto no âmbito do sistema multilateral de comércio (OMC), como em escala regional (Alca, UE-Mercosul, esquemas geograficamente restritos de liberalização comercial) ou ainda bilateral (com uma preocupante multiplicação desses acordos preferenciais, que frustram os partidários das regras universais de acesso).
O Brasil participa de todos esses processos, simultânea ou paralelamente, e parece assim natural que a maior presença desses temas nos meios de comunicação de massa tenha motivado os empresários do setor educacional (mas também os responsáveis das instituições públicas) a aumentar a oferta de cursos na área de relações internacionais (muitas vezes com especializações já dirigidas para o comércio exterior, os negócios internacionais ou para o estudo dos blocos comerciais). O investimento parece estar sendo correspondido pelo mercado potencial, já que a “clientela” desses novos cursos mostra-se disposta a testar as possibilidades de ascensão profissional em áreas até aqui restritas do ponto de vista do emprego. Existem, por enquanto, poucas barreiras à entrada (e a situação promete continuar fortemente competitiva no futuro previsível), mas a adequação entre a demanda efetiva de mercado e a capacidade instalada não foi ainda de fato testada, dadas a não segmentação da produção e a pouca diferenciação do “produto”. O essencial parece situar-se na flexibilização do “aparelho produtivo” e na capacidade adaptativa da oferta, o que parece garantido em função do caráter privado da maior parte do setor, o que de certa forma é uma boa condição de competitividade nessa área.
Este utilíssimo Diretório reflete toda essa realidade, pois ademais de apresentar um panorama institucional da área – com todos as coordenadas relativas à “oferta” no setor –, ele ainda informa sobre a orientação de cada um deles: multidisciplinar em mais da metade dos casos, mas já crescentemente diversificado nas demais instituições: forte presença de política internacional, mas também comércio e economia internacionais, inclusive agronegócios. A pós-graduação ou a especialização em relações internacionais ainda tendem a ser genéricas – deixando portanto a critério dos alunos e professores a orientação e o perfil a serem dados aos estudos empreendidos nesse nível – mas aqui também se nota o surgimento de cursos voltados para o comércio e as negociações internacionais, numa saudável demonstração de que as instituições estão se ajustando aos requisitos e demandas formuladas pelo “mercado” como um todo.
Com efeito, o “mercado” para o “internacionalista” ainda não está inteiramente consolidado no Brasil, sendo visível o sentimento de indefinição, quando não de angústia, em boa parte dos alunos de muitos desses cursos surgidos nos últimos anos em relação às suas possibilidades de inserção bem sucedida no mercado de trabalho. Não existe, parece claro, uma fórmula ideal de curso, já que o campo é obviamente vasto, as matérias em que pode incidir a formação do futuro internacionalista são muitas e extensas – indo da história ao direito, da economia à ciência política e muito mais – e os requerimentos dos futuros empregadores podem ser tão complexos e especializados como são, hoje, os negócios internacionais. Por isso, uma boa recomendação a todos os alunos seria esta: não importa o curso, seja basicamente um auto-didata perfeito e completo.
Mas este Diretório não constitui, tão simplesmente, um útil repositório de dados básicos e informações práticas sobre os cursos brasileiros da área: ele é também uma introdução básica sobre o surgimento, o desenvolvimento e a expansão desse setor ainda pouco conhecido, enquanto campo especializado das ciências sociais no Brasil. Com efeito, a introdução de Clóvis Brigagão traça os antecedentes, a evolução ulterior e a situação atual da área, agregando ainda uma informação inédita sobre o surgimento – ainda antes dos anos 90, mas essencialmente a partir de sua segunda metade – e a lenta consolidação, entre nós, de uma rede institucional de pesquisadores e profissionais de relações internacionais. Uma seção final, por exemplo, relaciona os encontros (Eneri) organizados pela Federação Nacional de Estudantes de Relações Internacionais (Feneri), bem como os três encontros, até aqui realizados, do Enepri, congregando os profissionais e pesquisadores dessa área (as resoluções, ou cartas, elaboradas ao final desses encontros são reproduzidas). Trata-se, portanto, de uma history in the making, da qual o autor é um dos mais distinguidos atores.
As conclusões do autor são também indicativas das principais características do setor: o crescimento observado até aqui é, em grande medida, “empírico”, podendo ocorrer uma certa retração da oferta e uma requalificação dos cursos, em função da demanda efetiva e da confirmação da diversidade do setor, considerada acertamente por Clóvis Brigagão como rica e positiva, pois que correspondendo à forma pela qual o Brasil se insere no sistema internacional. O Diretório é certamente preliminar em seu esforço pioneiro e, como tal, suscetível de aperfeiçoamento e de complementação informativa – se possível em sistemas online como os da Feneri e do Relnet –, mas ele já constitui um retrato completo, ainda que inicial, de um processo de consolidação de um campo importante do panorama institucional das ciências sociais no Brasil. Trata-se de um marco relevante para o conhecimento desse campo, a partir do qual a própria rede institucional que ele ajuda a fortalecer vai contribuir para a melhoria das estruturas de formação, para a ampliação dos intercâmbios internos e externos a essa área e, como esperamos todos nós, para a melhor qualificação possível dos estudantes e dos docentes dessa área, reforçando ainda mais a pesquisa e a produção especializada no campo das relações internacionais.
Poucas obras, no panorama editorial “normal”, aspiram ser peremptas ou então deliberadamente passíveis de “correções” periódicas, o que não é certamente o caso deste pequeno grande volume. Meu desejo, portanto, é que este Diretório tenha rápidas e contínuas atualizações, o que constituirá, justamente, a marca de seu sucesso. Finalizo com cumprimentos sinceros ao seu autor principal e aos colaboradores pelo esforço realizado neste primeiro mapeamento do campo relações internacionais do Brasil. Minha recomendação é a de que ele constitua o suporte inicial de um processo de construção de um verdadeiro sistema de informação – quantitativo e qualitativo – sobre esse campo promissor no Brasil, agregando dados sobre os recursos humanos e a produção da área, o que o transformará não apenas em um manual completo de informações, o que de certa forma ele já é, mas em instrumento de referência indispensável a todo profissional de relações internacionais. Longa vida ao Diretório de Relações Internacionais.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de agosto de 2004
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)