Book Reviews

14 setembro, 2007

144) 1808: começam os livros

Eu também colaborei num livro sobre 1808, mas ele só vai ser publicado em janeiro de 2008, para coincidir com as comemorações do bicentenário da abertura dos portos. Por enquanto, valeria a pena ler este aqui:

Laurentino Gomes:
1808
São Paulo: Planeta, 2007)

O ano que definiu o Brasil
1808, do jornalista Laurentino Gomes, lança luz sobre a fuga da família real portuguesa para o Rio - fato que mudou o destino nacional
Mary Del Priore*
Veja, 13 de setembro de 2007

Efeméride é uma palavra antiga e fora de uso que designa um fato importante ocorrido em determinada data. Em geral, é acompanhada de festejos, discursos e foguetórios. As comemorações do bicentenário da Revolução Francesa, por exemplo, levaram a um autêntico frenesi. Nenhuma pequena cidade escapou de plantar uma "árvore da liberdade", símbolo da igualdade entre os cidadãos. Esse élan comemorativo despertou, contudo, muitas críticas. Houve quem dissesse que a paixão dos festejos na verdade deixava em segundo plano o inventário dos acontecimentos históricos. E que estes nem sempre foram tão gloriosos. Pois no ano que vem os brasileiros terão sua grande efeméride. Em 2008, comemora-se a chegada da família real bragantina às praias tropicais. Preparam-se, em toda parte, congressos e festivais. Fala-se até mesmo na restauração da fragata que teria transportado dom João VI. Mas o leitor tem a mínima idéia do que está por trás disso? Se a resposta for não, já tem um guia: é 1808 (Planeta; 408 páginas; 39,90 reais), do jornalista Laurentino Gomes. Trata-se de um livro que se lê com um sorriso nos lábios.
Nascida da paixão pelo assunto, de dez anos de pesquisa e da sensibilidade do autor (que é diretor-superintendente da Editora Abril, que publica VEJA), a obra é um verdadeiro manual de viagem por todos os acontecimentos que envolvem esse mal conhecido episódio da história nacional. Mal conhecido porque, como bem diz Gomes, para entendê-lo é preciso despi-lo da rebuscada linguagem acadêmica com que é normalmente apresentado. E, convenhamos, nem todo mundo tem paciência para isso. Sua fórmula caminha no sentido contrário. Ela se vale de uma deliciosa mistura de bom humor e erudição para criar um amplo painel de acontecimentos e personagens que se cruzam durante os treze anos da aventura dos Bragança nos trópicos. Por meio de 29 capítulos curtos e cinematográficos, Gomes monta um quebra-cabeça em que cada peça se encaixa na precedente. E convida o leitor a cavalgar por uma sucessão de paisagens históricas. Assim, ele se vê no cais do Tejo, acenando para a família real que parte em caravelas caindo aos pedaços rumo ao Brasil. Cruza o Atlântico, em barcos apertados, onde faltam comida, água e sobram piolhos e baratas. Vê a esquadra se dispersar, graças às tempestades tropicais, e dom João, o rei tímido, supersticioso e feio, desembarcar em Salvador. Ali, em meio a recepções, o monarca assina a abertura dos portos que favorece comerciantes ingleses, mas também brasileiros, enriquecendo as duas pontas do comércio internacional. E o leitor compreende que a corte chega em pedaços. Maltrapilha, empobrecida e ansiosa por receber algo em troca do "sacrifício da viagem".
Depois das feéricas recepções no Rio de Janeiro, assiste-se, também, ao nascedouro de um estado perdulário e aos desmandos da má gestão. Mostra-se o início do compadrio e do toma-lá-dá-cá que dá origem ao Banco do Brasil: traficantes de escravos, fazendeiros e negociantes compram ações da instituição para ser compensados com títulos de nobreza. Vê-se surgir a prática das "caixinhas" nas concorrências e pagamentos de serviços públicos: 17% sobre saques do Tesouro. Vêem-se ainda as transformações pelas quais passa a colônia: a criação de escolas, de estradas, de hospitais. A europeização progressiva dos cariocas, que passam a consumir produtos importados, a vestir-se com a moda francesa e a copiar hábitos ingleses. Mas, por trás dos "progressos civilizacionais", a mancha da escravidão persiste: o sórdido mercado do Valongo a receber mais e mais africanos, fazendo a fortuna de empresários proeminentes e respeitados. Elias Antônio Lopes, que doou o palácio de São Cristóvão ao rei, foi um deles. O leitor acompanha, ainda, os viajantes estrangeiros que "descobrem" o Brasil, anotando em desenhos e livros de viagem suas impressões sobre nordestinos, paulistas e gaúchos; sobre negros e índios, homens e mulheres; sobre a natureza perpetuamente em festa. Ele acompanha, finalmente, o declínio de Napoleão, o todo-poderoso que expulsou dom João de Portugal, sua derrota na guerra peninsular e o exílio em Santa Helena. Mas também o ressentimento dos portugueses com seu rei, que os abandonou e esqueceu. O sentimento de orfandade alimenta o desejo pela revolução liberal que eclode na cidade do Porto em 1820, obrigando dom João VI ao retorno.
Além dos episódios históricos apoiados em fontes documentais e nos estudos mais atualizados sobre o tema, o autor faz saltar das páginas os personagens emblemáticos do período. Minibiografias contam a trajetória do próprio dom João, de sua famigerada mulher, Carlota Joaquina, do funcionário da Real Biblioteca, Joaquim dos Santos Marrocos, do Cabugá ou Antonio Gonçalves Cruz, mentor de uma revolução liberal em Pernambuco que incluía o resgate de Napoleão da Ilha de Santa Helena para lutar lado a lado com os insurgentes, ou do Padre Perereca, cronista de usos e costumes da época, que descreve como ninguém o encontro de dois mundos: o europeu e o americano.
Gomes não adere à cosmética atual que, para reabilitar dom João, recorre a eufemismos como "transmigração" ou "translado". Para ele, houve "fuga" mesmo, pois o rei não tinha alternativa. A pressão exercida pelo gênio de Napoleão não dava margem a estratégias arrojadas. Não por acaso, a resposta portuguesa foi, simplesmente: pernas para que te quero. Sobre esse rei tão mal conhecido, Napoleão registrou em suas memórias: "Foi o único que me enganou". Enganam-se também os que acham que aquele foi um período sem maiores novidades e transformações. 1808 desvenda os acontecimentos com graça e leveza, convidando o leitor a descobrir o real sentido desta efeméride tão próxima. É uma síntese histórica que brilha pela limpidez das explicações e pelo interesse de projetar o passado no presente. É uma boa idéia sustentada por uma metodologia sem falhas. Uma boa maneira de apreciar o foguetório que virá, sabendo, de antemão, do que se trata.

* Mary Del Priore é historiadora e autora de O Príncipe Maldito - Traição e Loucura na Família Imperial (Objetiva, 2007).

143) A cabeça do povo (em toda sinceridade)

Camaradas, o povo também se equivoca
Marcelo Coelho
Folha de São Paulo, quarta-feira, 12 de setembro de 2007

A propósito do livro de
Alberto Carlos Almeida:
A Cabeça do Brasileiro
(Rio de Janeiro: record, 2007)

"Esse sociólogo quer demonstrar que as elites são mais éticas do que a classe baixa!"

Uma onde de inconformidade e ranger de dentes parece ser o principal efeito do livro "A Cabeça do Brasileiro", do sociólogo Alberto Carlos Almeida, recentemente publicado pela editora Record.
O autor, que é professor na Universidade Federal Fluminense e diretor de um instituto de pesquisas, resolveu medir as opiniões da população brasileira a respeito de assuntos cruciais, como racismo, intervenção do Estado, sexualidade, violência policial, "jeitinho" e corrupção. Os resultados são indiscutivelmente simpáticos para as "elites" e pouco abonadores no que se refere ao "povão".
Em praticamente todas as questões propostas, os entrevistados com diploma de ensino superior se mostram menos fatalistas, menos conformistas, menos conservadores do que a população de baixa escolaridade. O abismo é total quando se compara o pensamento de uma mulher nordestina, analfabeta, idosa e moradora do interior com as opiniões de um jovem habitante de alguma capital do Sudeste.
Os resultados do livro caíram como uma péssima notícia nos ambientes em que é costume criticar "as elites" pelo atraso do país. Paralelamente, soam como música para os setores de classes média e alta urbanas que não engolem a popularidade do governo Lula.
O levantamento procurou utilizar questões bastante precisas para medir as diferenças de atitude da população. Pede-se, por exemplo, que o entrevistado diga se concorda ou não com esta frase: "Se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio, como se fosse sua propriedade".
Só 3% dos que têm curso superior concordam com isso. Entre os analfabetos, 40% acham a frase correta.
Para avaliar a presença de uma "mentalidade hierárquica" na população, Almeida valeu-se de recursos interessantes. Eis um caso: se a patroa disser à empregada doméstica que ela pode assistir à televisão na sala junto com ela, qual deve ser a atitude da empregada? Sentar no sofá junto da patroa? Assistir à TV na sala, mas pegar uma cadeira na cozinha? Continuar assistindo à TV no quarto de empregada?
Na região Sul, 72% acham que a empregada deveria se sentar no sofá. No Nordeste, a proporção cai para 55%. Entre os analfabetos, 53% acham que a empregada deve pegar a cadeira na cozinha. Só (só?) 25% dos que têm curso superior têm essa opinião.
O homossexualismo masculino é rejeitado por ampla maioria: 78% dos brasileiros mostram-se "totalmente contra" essa prática. A opinião muda um pouco se o entrevistado é do Sudeste (85%) ou do Centro-Oeste (94%), e se tem menos de 24 anos (83%) ou mais de 60 (94%).
Novamente, o decisivo nesse ponto é a escolaridade: dos que têm curso superior, só (só?) 75% são totalmente contra, enquanto entre os analfabetos a rejeição sobe a 97%.
E por aí vai. Espancamento policial, censura aos meios de comunicação, socorro a empresas falimentares, desinteresse em cuidar do patrimônio público: praticamente não há coisa criticada pelo pensamento liberal-ilustrado que não tenha apoio dos setores menos escolarizados.
Pois bem, a pesquisa provocou reações violentas. Esse sociólogo quer demonstrar que as elites são mais éticas do que a classe baixa! Para ele, o Brasil seria perfeito se o povo não existisse...!
É possível que muitos leitores do livro achem mesmo que os pobres são um grande estorvo ao nosso progresso. Mas o levantamento feito por Alberto Carlos Almeida não tem por que suscitar interpretações desse tipo.
Primeiro, porque é uma pesquisa sobre opiniões, não sobre comportamentos. As "elites", se quisermos, podem muito bem dizer coisas razoáveis e na prática agir sem ética nenhuma -e a pesquisa não se propunha a verificar esse tipo de coisa.
Segundo, porque está longe de levar a conclusões reacionárias. Ao contrário, não se atribui a nenhuma força imutável, como "o caráter nacional do brasileiro", a "herança ibérica" e coisas do gênero, a quantidade de opiniões antidemocráticas que pulula nas tabelas. O que falta é educação. Terceiro, porque se verifica que é nas escolas, e não por meio da TV e das igrejas, por exemplo, que uma visão moderna do mundo pode ser socializada.
E seria muito estranho, finalmente, se num país extremamente dividido e desigual as opiniões da população fossem homogêneas e "certinhas". Não há o que comemorar, nem do que se enraivecer, com o livro de Alberto Carlos Almeida. Constitui um retrato -o que importa é mudá-lo.

coelhofsp@uol.com.br

13 setembro, 2007

142) Escapando da prisão malthusiana

Quando o homem deixou de ser um animal?
Fernando Reinach*
O Estado de São Paulo, 13 setembro 2007

A propósito do livro de
Gregory Clark:
A Farewell to Alms
Princeton University Press, Princeton, 2007

Quando o homem deixou de ser um animal? Quando descobrimos o fogo ou ao perceber que éramos mortais? As respostas variam, mas, em um livro recém-publicado, Gregory Clark argumenta que o homem deixou de viver como um animal somente quando se livrou da "armadilha Malthusiana", o que teria ocorrido por volta de 1800.

É um conceito bem conhecido em Biologia. Malthus foi o primeiro a compreender a dinâmica das populações e sua interação com o ambiente. Suas idéias influenciaram Marx e Darwin. Para Malthus, cada espécie se reproduz o mais rápido possível, limitada por fatores ambientais, como falta de alimento ou predadores. Leões e gazelas são prisioneiros dessa armadilha. Se as gazelas aumentam em número, fica mais fácil para o leão caçar e a população de leões aumenta. O leão nunca gasta menos tempo caçando por existirem mais gazelas ou por ter descoberto um outro método de caça. Quando isso ocorre, o período de vacas gordas dura pouco tempo, pois rapidamente essa nova vantagem se transforma em um aumento da população de leões.

No caso dos seres humanos, novas tecnologias, como o fogo e a agricultura, poderiam ter tornado a vida mais fácil. O que Clark demonstra é que, até 1800, cada tecnologia descoberta pela humanidade foi imediatamente convertida em aumento da população e não em melhora na qualidade de vida. Em outras palavras, até 1800, o homem vivia preso à "armadilha Malthusiana" do mesmo modo que qualquer outro ser vivo.

Entre a enorme quantidade de dados quantitativos obtidos por Clark, um bom exemplo é a comparação de sociedades muito primitivas, como os !kung africanos ou os ianomâmis brasileiros, que vivem quase sem tecnologia, com os camponeses ingleses de 1300 e a população urbana de Londres em 1750. Clark demonstra que essas três populações, apesar de dominarem tecnologias totalmente diferentes, tinham basicamente as mesmas condições de vida. Consumiam as mesmas calorias por dia, gastavam o mesmo número de horas para obter alimentação e não acumularam bens de uma geração para outra.

Clark demonstra que a população pobre de Londres viveria melhor se pudesse se mudar para a Amazônia, entre os ianomâmis. Todo o desenvolvimento tecnológico ocorrido entre 1300 e 1800 provocou um aumento da população sem que tenha havido uma melhora na qualidade de vida. As limitações do meio ambiente eram tantas que o crescimento populacional entre 130 mil anos antes de Cristo (população humana estimada em 100 mil pessoas) até 1800 (770 milhões) pode ser explicado assumindo-se que, nesse período, cada mulher teve, em média, 2,07 filhos que sobreviveram até a idade reprodutiva.

Clark argumenta que, durante esse período, nossa população foi controlada unicamente por fatores ambientais, tal qual qualquer animal. É a "armadilha Malthusiana" em ação.

Para ele, somente nos últimos 200 anos nos libertamos da "armadilha" e deixamos de ser realmente animais. O resultado é que hoje temos mais de 6 bilhões de pessoas no planeta e, enquanto nos países ricos temos epidemias de obesidade, nos países pobres as pessoas vivem pior que nas sociedade primitivas. A questão é saber se fez bem à humanidade ter conseguido se libertar da "armadilha Malthusiana". O livro promete causar polêmica.

Mais informações em Gregory Clark, A Farewell to Alms, Princeton University Press, Princeton, 2007.

* Biólogo (fernando@reinach.com)