Book Reviews

26 outubro, 2008

202) Uma historia da Europa contemporanea

Pós-Guerra - Um história da Europa desde 1945
Autor(es): Tony Judt
Editora: Objetiva
Área(s): História
880 pág.
Preço: R$ 79,90
enciclopédia. Brilhante.? ? New York Review of Books

O inglês Tony Judt, um dos historiadores e intelectuais mais respeitados da atualidade, dedicou pelo menos uma década de pesquisa e reflexão à desafiadora tarefa de escrever a primeira História da Europa contemporânea. Ao longo de novecentas páginas, Pós-Guerra vai de Portugal à Rússia, abrangendo 34 países e cobrindo um período de sessenta anos em uma só narrativa.

Com uma abordagem inovadora, Judt trata praticamente todo o século XX como "o epílogo da Segunda Guerra" e considera o ano de 1989, marcado pelo colapso do comunismo e a queda do muro de Berlim, este sim o começo do fim do pós-guerra.

Apesar do tamanho e complexidade do continente, Judt criou um relato coeso de seu passado recente. Sofisticado e ao mesmo tempo acessível leigos no assunto, Pós-guerra reúne relações internacionais, políticas internas, pensamentos e teorias, mudanças sociais e aspectos culturais numa grandiosa narrativa.

Cada país tem seu momento de entrar em cena, ainda que os chamados grandes temas estejam sempre em foco ? a guerra fria, a relação de amor e ódio dos países europeus com os Estados Unidos, a decadência e o renascimento cultural e econômico, o mito e a realidade da unificação econômica na Comunidade Européia, nenhum deles ofusca o grande personagem que é este continente como um todo.

Uma das conclusões mais interessantes a que Judt chega é apresentada no último capítulo, "Da casa dos mortos", no qual analisa o efeito do Holocausto sobre a personalidade coletiva do continente. Ainda que tenha levado mais de quarenta anos para ser assimilada, é exatamente a tragédia da Segunda Guerra que confere unidade à Europa.

Seguindo essa linha de raciocínio, o autor critica também a atual posição política de Israel, que, apoiado pelos Estados Unidos, distorce o significado do Holocausto e o simplifica ao nível de uma matança de judeus. Judt, que também é judeu e viveu o período do pós-guerra na Europa, afirma que, com isso, o momento histórico fica esvaziado de significado. Para ele, a compreensão da importância do Holocausto passa pela percepção da universalidade do mal que um povo pode impingir a outro em qualquer genocídio. Ele destaca o drama do Kosovo e da Iugoslávia, por exemplo, como um alerta: a lição ainda está por ser aprendida.

Mas Pós-Guerra não se detém a uma só conclusão. Judt analisa assuntos tão diferentes e tão importantes na formação e na unificação do caráter da Europa contemporânea ? os movimentos estudantis, culturais e de independência, o cinema e até o futebol.

Pós-Guerra foi eleito um dos dez melhores livros do ano de 2005 pelo New York Times e escolhido pela revista Time como o melhor livro do ano.

Sobre o autor:
TONY JUDT nasceu em Londres, em 1948. Formou-se pelo King?s College, em Cambridge, e pela École Normale Supérieure, em Paris, e já lecionou em Cambridge, Oxford, Berkeley e na Universidade de Nova York, onde fundou, em 1995, o Remarque Institute, que se dedica ao estudo da Europa. Judt é atualmente professor titular de Estudos Europeus, ocupando cátedra instituída em homenagem a Erich Maria Remarque, veterano da Primeira Guerra Mundial e autor do romance Nada de Novo no Front.

Autor e organizador de 11 livros, Judt é articulista freqüente em vários periódicos, como The New York Review of Books, Times Literary Supplement, The New Republic e The New York.

Há um grande livro na praça, é "Pós-Guerra'
ARTIGO DE ELIO GASPARI
Folha de São Paulo - 30/04/2008

Tony Judt escreveu uma preciosa história da Europa, da ruína de 1945 à prosperidade de hoje

SAIU UM DAQUELES livros que entram na vida de quem os lê e não saem mais. É "Pós-Guerra - Uma História da Europa desde 1945", do professor anglo-americano Tony Judt. São 848 páginas (1,2 kg) com o majestoso painel de um mundo que em pouco mais de meio século passou da ruína ao controle de mais de um terço da produção mundial. A Segunda Guerra custou à Europa 36 milhões de vidas e desalojou 30 milhões de pessoas. Hoje a União Européia forma um bloco de 500 milhões de cidadãos livres, educados e prósperos, capazes de fazer do século 21 sua hora e vez.
"Pós-Guerra" será útil para quem não viveu o período, pois passa longe da matraca das falsificações produzidas durante a Guerra Fria . Judt vira pelo avesso diversas certezas. Stálin poderia invadir a Europa? Difícil. Em 1946, o generalíssimo cometeu um dos erros de sua vida. Achava que a guerra era inevitável, mas teria os Estados Unidos de um lado, a Inglaterra de outro e ele de fora. Entre 1945 e 1947, a União Soviética baixou seu efetivo militar de 11,4 milhões para 2,9 milhões de soldados. Socialismo? Não houve esse tipo de coisa, o que existiu foi o estado ditatorial leninista.
Judt parece um malabar da política, da economia e da cultura. Vai da filosofia (o escritor francês Jean Paul Sartre chamava a violência comunista de "humanismo proletário") ao cinema (a Ponte do Rio Kwai é um sinal de que os ingleses passaram a ver a guerra de outra forma).
Quando joga números no meio da narrativa, consegue o improvável: aumenta o prazer da leitura. Algumas vezes surpreende: a guerra destruiu apenas 20% da capacidade industrial da Alemanha e tanto ela quanto a Itália, a França, o Japão saíram com mais máquinas e equipamentos do que tinham antes do conflito. A Alemanha administrou a França mandando para lá apenas 1.500 funcionários. (Em 1953, a máquina de propaganda do governo americano tinha 13 mil empregados.)
"Pós-Guerra" conta a história de duas Europas. A Ocidental, vigorosa, e a socialista, estagnada. Em 1957, só 2% das casas italianas tinham geladeira. Em 1974, eram 94%. Segundo Judt, diversos fatores contribuíram para o renascimento europeu, da ajuda americana à liberalização do comércio. Mesmo assim, decisivos mesmo foram o otimismo e o leite grátis. Mais gente, mais trabalhadores, mais produtos e mais consumidores transformaram as cidades arruinadas na Europa moderna.
O livro tem dois capítulos excepcionais. "O fantasma da Revolução" conta os anos 60 da juventude do Ocidente. O seguinte, "O fim de caso" narra os 60 do outro lado do Muro. Judt desmonta a mitologia sessentona com muita erudição, alguma ironia e nenhuma piedade. Ele gosta mais da garotada de Praga do que dos cabeludos de Paris. Sua conclusão: "Os 60 acabaram mal em todos os lugares".
Dois personagens do fim do século estão muito bem retratados. Margaret Thatcher, por quem Judt tem uma ponta de admiração, mesmo detestando sua política, e Mikhail Gobarchev, a quem maltrata, gostando do que fez. O governante soviético admitia que tocassem rock, desde que fosse "melodioso, coerente e bem executado". "Era isso que Gorbachev queria, um comunismo melodioso, coerente e bem executado", diz Judt.

201) Um livro por dia...

Esta era a recomendação do livreiro americano, sediado em Paris, George Whitman, que criou a Shakespeare and Company Bookshop (37, rue de la Bucherie, Paris), cuja trajetoria foi objeto do livro abaixo.


Jeremy Mercer:
Um Livro Por Dia
Tradução: Alexandre Martins
Casa da Palavra - 320 págs. - R$ 39,90

Resenhas:

Os sonhadores
André Rodrigues
Revista RollingStone, 19.10.2007

Numa tarde cinzenta do inverno parisiense de 2000, uma chuva fina logo se trnsforma em temporal. Jeremy Mercer, jovem jornalista canadense ameaçado de morte, caminha sem dinheiro ou esperança perto da cadetral de Notre-Dame quando é surpreendido pelas fortes gotas. Avista do outro lado do Sena o minguado letreiro da livraria Shakespeare and Company, para onde corre em busca de refúgio. Horas depois, adquire um exemplar de Um Retratro do Artista Quando Jovem, toma chá com estranhos e descobre que irá morar numa espécie de ilha da fantasia para os amantes de livros e aventuras. Assim começa Um Livro por Dia, as memórias do período em que Mercer ficou sob os cuidados de George Whitman (hoje com 93 anos), lendário proprietário dessa loja cinquentona que virou cartão-postal da cidade dos sonhos. Velho comunista cheio de manias, Whitman já abrigou - de graça - mais de 40 mil aspirantes a escritor, mochileiros e celebridades. Todos em busca de um canto onde possam curtir uma Paris cinematográfica. As narrativas sobre essa verdadeira Torre de Babel misturam-se ao emocionante perfil que Mercer faz de Whitman, homem raro e admirável, que “acredita que pode mudar o mundo e mudar as pessoas que ele recebe em sua loja”. O endereço: 37, rue de la Bucherie, Paris.

Duas vidas irreverentes
Geraldo Galvao Ferraz, 10.10.2007

Muitas vezes, escritores acham que suas histórias pessoais, sobretudo de infância e juventude, darão grandes livros. A perspectiva do autor se perde com a proximidade dos fatos reais. Mas, claro, há quem acerte. Dois exemplos disso são livros escritos em tom agridoce, que relembram momentos da vida dos escritores Bill Bryson e Jeremy Mercer. O primeiro conta sua infância e adolescência, Jeremy Mercer relata como viveu quatro meses numa livraria parisiense, aos 28 anos. Bryson nasceu em 1951 e depois assumiu a identidade de um super-herói, o Kid Trovão, especializado em detonar professores chatos com seu raio da morte. Suas memórias englobam muito do cotidiano americano, especialmente nessa época do após-guerra. Como ele diz: “Não consigo imaginar época ou lugar mais gratificante para se estar vivo.Nenhum país jamais conhecera tamanha prosperidade (...) Tudo o que as companhias americanas tinham de fazer era parar de construir tanques e encouraçados e começar a construir Buicks e Frigidaires - e, rapaz, construíram para valer.”
A vida do pequeno Bill poderia estar nos Simpsons. O mundo, para ele, é um lugar cheio de perigos e obstáculos, mas também de aventuras e tentações. O livro de Jeremy Mercer também tem muito humor, muita irreverência e uma montanha russa de altos e baixos na vida do narrador-protagonista. Antes, é preciso falar de Shakespeare & Co., uma das livrarias mais famosas do mundo. Ela é a sucessora da loja de Sylvia Beach, em Paris, com o mesmo nome, que publicou a primeira edição de Ulysses, de James Joyce (para saber mais, ler Shakespeare and Company, de Sylvia Beach, recentemente relançado pela Casa da Palavra).
Jeremy tem de sair às pressas do seu Canadá natal. Com pouquíssimo dinheiro, vai parar na tal livraria, que vive da fama da sua antecessora, mas garante a alguns autores-em-progresso, cama e sopa em troca de trabalho. Uma fauna estranhíssima frequenta a livraria e não menos estranho é seu dono. Jeremy Mercer tem bom olho para detalhes e seu livro é uma delícia.

Clássicos literários, percevejos e pães mofados em Paris
Vivian Rangel
Jornal do Brasil, 18.08.2007

Seja gentil com estranhos, pois eles podem ser anjos disfarçados. Foi com este conselho que o livreiro George Whitman recebeu o canadense Jeremy Mercer para o tradicional chá dos domingos na Shakespeare and Company e ofereceu-lhe uma cama entre as estantes repletas. Eram duas as condições: ler um livro por dia e ajudar nas tarefas da livraria. Mercer, que não tinha dinheiro nem rumo, não titubeou, mudou-se para o colchonete infestado de percevejos e encarou a rotina de falta de banho e escassez de comida. A trajetória é narrada no misto de diário, romance e reportagem Um livro por dia, recém-traduzido (por Alexandre Martins) no Brasil.
Antes de chegar a Paris, o repórter de polícia canadense sequer havia ouvido falar da livraria, herdeira ideológica do histórico ponto fundado por Sylvia Beach na década de 20. Americana de Nova Jersey, Sylvia abriu as portas em 1919 e inaugurou uma espécie de bunker da intelligentsia. Ezra Pound, Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e Simone de Beavoir foram alguns dos associados. Foi Sylvia quem enfrentou a censura e publicou Ulisses , de James Joyce. Ernest Hemingway - que dedica algumas páginas de Paris é uma festa à livraria - foi ainda responsável por reabri-la no fim da 2ª Guerra, chegando em uma caravana de jipes e gritando o nome de Sylvia antes de retirar os últimos alemães de cima do telhado.
As memórias e o acervo de Sylvia foram herdados por George Whitman - livreiro americano que não tem qualquer parentesco com o poeta mas que já tirou várias fotos como neto de Walt. Seguindo o ideal marxista e o impulso bibliófilo, expandiu a livraria em três andares, todos com camas para acomodar poetas, escritores e escapistas interessados em respirar o ar denso de sonhos da capital francesa. Como os beatniks William Burroughs, Allen Ginsberg e George Corso - este ladrão de vários exemplares, sustento de outros vícios. E também Samuel Beckett, Henry Miller e Anäis Nin - de quem, aliás, George foi mais do que amigo. O livreiro não negava abrigo a quem compartilhasse de suas paixões literárias. E suportasse as condições da livraria.
Poeira, pães mofados, ausência de chuveiros e as mudanças de humor de George foram alguns dos obstáculos enfrentados por Mercer, que usou o diário do período morando na livraria como bloco de anotações para iniciar seu livro.
- A livraria tem uma atmosfera caótica, algo de albergue espanhol, exótico e excitante, embora nem sempre um ambiente criativo - pondera Mercer. - Mas a Shakespeare and Company de hoje é muito mais acessível do que a original, não importa se você é apenas um turista ou tem reais ambições como escritor.
Repórter de polícia numa pacata cidade canadense, Mercer revelou nomes de uma fonte criminosa em um de seus livros de reportagem. Praticamente fugiu do país sob ameaça de retaliação. Paris foi o destino, supostamente escolhido porque lá poderia completar os créditos que faltavam para receber o diploma de jornalista. Sem dinheiro e vagando pela cidade, num dia de chuva adentrou a Shakespeare and Company e começou a ler.
- O melhor livro que descobri por lá foi O céu que nos protege, de Paul Bowles - elege Mercer. - Citaria outros como A trilogia de Nova York, de Paul Auster, e Viagem ao fim da noite, de Céline. Ler é um exercício. Agora, por exemplo, estou lendo Moby Dick, mas só consigo ler 50 páginas por dia. Se estivesse na Shakespeare and Company terminaria em dois dias.
De forma leve e divertida, Mercer intercala sua rotina na livraria em 2001 - que garante ser a versão fiel dos fatos - com dados da história da livraria e da vida pessoal de George. Por vezes o relato perde o rumo na tentativa de emular a vida errante dos beatniks em contraste com a mentalidade classe-média de Mercer. Ou no grand finale, quando o repórter heroicamente garante a permanência da livraria.
Com o sucesso do livro - como relata Mercer em seu blog, 23 livrarias visitadas em 44 dias na época do lançamento - ele abandonou o jornalismo e finaliza When the guillotine fell, sobre o último homem a perder a cabeça na França, um libelo contra a pena de morte. A Shakespeare and Company é atualmente dirigida por Sylvia - filha de Whitman batizada em homenagem à criadora da livraria - e, embora seja mais seletiva ao receber os hóspedes, mantém os rituais de leitura obrigatória e o chá aos domingos.
O lado jornalista de Mercer só volta a pulsar quando perguntam se ele pretende escrever novamente sobre a livraria.
- Alguns críticos me julgaram ingênuo, o que de fato eu era ao chegar a Paris - admite. - Espero que, um dia, alguém faça uma biografia definitiva da Shakespeare and Company, pois não sou a pessoa adequada. Afeiçoei-me a George, minha vida foi transformada pela livraria e não poderia escrever algo tão objetivo.

À sombra das estantes
Olga de Mello
Valor Econômico. 17.08.2007

Na foto, a livraria Shakespeare and Company, em Paris: dois livros tratam da lendária livraria, ponto de encontro de escritores do início do século XX e abrigo recente para um jornalista canadense
Quando tenho algum dinheiro, compro livros; se me sobrar um pouco, compro roupas e comida. Assim o pensador holandês Erasmo de Roterdã (1455-1536) explicava seu amor pelos livros, produtos cujo consumo em larga escala foi iniciado durante sua infância, quando o alemão Johannes Guttemberg, por volta de 1545, criou a primeira prensa. Depois de popularizar-se ao longo dos séculos e enfrentar a era da informática, o livro firma-se cada vez mais como objeto de culto, alcançando o nível de tema literário de sucesso em países onde tradicionalmente a leitura é um luxo para poucos. Apenas no Brasil, quatro títulos estrangeiros freqüentam, simultaneamente, as listas de mais vendidos, seguindo bons desempenhos em outros mercados. Ao lado de dois romances a respeito de crianças que procuram - ou furtam - livros, relatos semijornalísticos sobre livreiros que hospedam escritores vêm conquistando os leitores brasileiros.
Desde seu lançamento há cinco meses, A Menina Que Roubava Livros (Intrínseca, 494 págs., R$ 39,90) vendeu 150 mil exemplares e aumentou em 500% o faturamento da editora, revela o presidente da Intrínseca, Jorge Oaquim, que vê no romance um clássico contemporâneo: Será igual a O Mundo de Sofia, um livro para jovens leitores que conquistou os adultos, diz. O público brasileiro também se entusiasmou com A Sombra do Vento, do espanhol Carlos Ruiz Zafón, (Suma de Letras, 399 págs., R$ 39,90), um fenômeno literário que permaneceu mais de cinco anos na lista de best-sellers na Espanha e vendeu mais de 6,5 milhões de cópias em todo o mundo, sendo 35 mil no Brasil.
Há 54 semanas O Livreiro de Cabul (Record, 316 págs., R$ 42), da jornalista norueguesa Âsne Seierstad permanece nas listas dos mais vendidos, que estão abrindo espaço também para Um Livro por Dia - Minha Temporada Parisiense na Shakespeare and Company (Casa da Palavra, 320 págs., R$ 39,90). Irritado com a abordagem de Âsne, a quem hospedou por três meses, sobre a rotina doméstica de sua família, Shah Muhammad Rais escreveu Eu Sou o Livreiro de Cabul (Bertrand, 96 págs., R$ 26,00), com outra versão sobre o modo de vida no país de maioria muçulmana, arrasado pela guerra. Em Um Livro por Dia, o jornalista canadense Jeremy Mercer trata com humor a falta de higiene e a desorganização administrativa da Shakespeare and Company, onde viveu a convite do excêntrico livreiro George Whitman. Há cerca de 20 anos, outro livreiro, o britânico Frank Doer, foi imortalizado pela escritora americana Helene Hanff. Durante décadas, eles mantiveram uma intensa correspondência descrita no livro 84 Charing Cross Road, mais conhecido no Brasil depois do filme Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, com Anne Bancroft e Anthony Hopkins. Não é raro encontrar apaixonados por livros protagonizando tramas ficcionais que, por vezes, pouco têm de eruditas. O escritor de policiais John Dunning criou um detetive especialista em obras raras. A resistência ao obscurantismo está tanto no clássico Farenheit 451, de Ray Bradbury, em que bombeiros incineram livros, que passam a ser memorizados para que não se perca a cultura, quanto em Balzac e a Costureirinha Chinesa - que a Alfaguara relança em setembro (R$ 28,90). Este mostra dois rapazes desafiando o regime maoísta ao ler uma mala repleta de obras clássicas ocidentais, consideradas subversivas pelo governo.
O protagonista de A Confissão, (Rocco, R$ 31), de Flávio Rodrigues, valoriza os livros porque tira deles seu sustento: ladrão, rouba volumes que revende em sebos. Livreiros e livrarias estão em A Décima Terceira História (Record, 420 págs., R$ 50,00), o romance gótico da inglesa Diane Setterfield que ficou semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times, e em Desvarios no Brooklyn (Companhia das Letras, 328 págs., R$ 49,50), de Paul Auster.
Nada mais natural que a literatura aproveite como ambiente o palco do encontro entre o leitor e o livro, diz Rui Campos, um dos sócios da Livraria da Travessa, que determinou um espaço exclusivo para livros sobre bibliofilia. Laura Gasparian, da Livraria Argumento, acha que o livreiro merece ser imortalizado na pele de astros do cinema como Hugh Grant (Notting Hill) ou Johnny Depp (O Último Portal, de Roman Polanski, baseado na novela O Club Dumas, de Artur Pérez-Reverte): É uma profissão muito charmosa, porque vende o conhecimento. É uma satisfação perceber o crescimento de títulos sobre bibliofilia no Brasil, embora não esteja surgindo um nicho nem um filão. Antes, nem tínhamos concorrência, brinca Martha Ribas, gerente-editorial da Casa da Palavra, que tem 18% de seu catálogo dedicado ao gênero. O primeiro lançamento da editora, O Bibliófilo Aprendiz, de Rubens Borba de Moraes (207 págs., R$ 32,00), continua em catálogo. O maior sucesso, A Paixão pelos Livros (152 págs., R$ 32,00) está na quinta reimpressão. Junto com Um Livro por Dia, a Casa da Palavra relançou Shakespeare and Company, uma Livraria na Paris do Entre-Guerras (272 págs., R$ 42,00), a autobiografia da livreira Sylvia Beach, proprietária da Shakespeare and Company original. Conseguimos transformar uma paixão em negócio lucrativo, com uma excelente receptividade, afirma Martha. Em 2005, o Atelier Editorial lançou Philobiblon (181 págs., R$ 27,00), o primeiro livro sobre bibliofilia, escrito pelo inglês Richard de Bury em 1344. As vendas foram modestas, mas o editor Plínio Martins Filho não desanima. É importante termos esses títulos disponíveis, mesmo com um público pequeno, acredita, informando que ainda este ano o conto O Inferno do Bibliófilo, do francês Charles Asselineau, será o segundo volume da coleção O Prazer de Ler, iniciada com Philobiblon.
A exemplo de Virginia Woolf, para quem ler sistematicamente com o objetivo de tornar-se um especialista ou uma autoridade poderia matar a paixão mais humana pela leitura pura e desinteressada, o mais renomado bibliófilo brasileiro, José Mindlin, acha que a formação deve ser mais conseqüência que objetivo do leitor: Não se pode pensar em educação sem leitura, mas só é inoculado pelo vírus da leitura quem obtém prazer nela. O refinamento vem aos poucos, diz Mindlin, um entusiasta das bibliotecas populares que têm sido montadas em garagens de diversas cidades do Brasil, sem registro formal nem catálogo das obras. Iniciativas que merecem elogio semelhante do argentino Alberto Maguel, em A Biblioteca, à Noite (Companhia das Letras, 301 págs., R$ 47,00), em que destaca o esforço do governo colombiano, que criou um sistema dinâmico de bibliotecas itinerantes que alcança locais inacessíveis por automóveis usando os biblioburros - sacolas com livros carregadas em lombos de burros.

Histórias de uma livraria
Jornal de Brasília, 29.07.2007
LIVROS
Histórias de uma livraria

Editora Casa da Palavra lança no Brasil dois livros que repassam a história da charmosa livraria parisiense Shakespeare and Co.

Shakespeare and Company – Uma Livraria na Paris do entre-guerras Sylvia Beach.
Editora Casa da Palavra. 272 páginas. Preço médio: R$ 42.

"Lemos para não morrer idiotas". A célebre frase do contista Jorge Luís Borges pode definir, para alguns, a razão da leitura como hobby. Para muitos, porém, literatura pode ser um esporte, uma necessidade, um vício. E no extremo da paixão, ler pode não ser suficiente. É preciso ter o livro, guardá-lo na estante, acumulá-los. Em 1919 uma jovem americana, apaixonada por litertura e livros, já tinha esse desejo de colecionar seus pequenos mundos de aventura encadernados. O motivo, porém, era mais nobre do que apenas colecionar obras. A jovem era Sylvia Beach, e seu sonho era montar uma biblioteca onde os franceses pudessem encontrar obras de língua inglesa, folhear clássicos e conhecer novos autores. Tudo isso, bem acomodados em poltronas espalhadas pelos corredores de livros. Beach concretizou seu sonho, fundou a lendária livraria Shakespeare and Company e fez daquele refúgio, na rua Dupuytren, em Paris, ponto de encontro para escritores da Geração Perdida como Hemingway, Gertrude Stein e o incrível James Joyce.

Filha de um reverendo presbiteriano, Sylvia Woodbridge Beach nasceu na costa Leste dos EUA, em 14 de março de 1887. Era tempo de Stravinsky e Picasso e a França estava em guerra quando a menina Beach foi para Paris. Sonhava em devorar toda a poesia francesa e fazer jornalismo literário. Dizia não o ter conseguido. Ledo engano de quem concordar com ela. De fato, nunca exerceu o jornalismo, mas deixou como legado, não só a livraria mais charmosa de Paris, mas também um livro de memórias, recém lançado no Brasil pela editora Casa da Palavra, que já é um artefato de colecionador. Shakespeare and Company – Uma Livraria na Paris do Entre-Guerras permite ao leitor uma viagem impagável no tempo. As maravilhosas buscas por livros raros, o conhecimento de obras recém editadas e que, hoje, são clássicos da literatura moderna. Seu encontro com Joyce e os dramas que viveu para conseguir, em meio à tantas reclamações, exigências e peculiaridades do autor irlandês, publicar seu livro homérico: Ulisses. Sim, a primeira edição do clássico que revolucionou a literatura do século 20 é assinada pela Shakespeare and Company, até então, inexperiente como editora.

Nada é mais jornalístico e mais literário que as confissões que Sylvia narra em suas memórias. "Joyce era de altura mediana, magro, um pouco curvado, gracioso. Suas mãos chamavam atenção. Eram muito estreitas. Nos dedos médios e anular da mão esquerda, ostentava grandes anéis com pedras. Seus olhos, de um azul profundo, nos quais brilhava a luz do gênio, eram de extrema beleza." Suas impressões nos deixam o mais perto que se pode chegar de um autor e sua obra.

Hospedado entre os livros
A livraria Shakespeare and Co. original foi fechada por força da ocupação nazista. Conta Sylvia que, um dia, um oficial alemão apareceu querendo comprar o exemplar de Finnegas Wake, autografado por Joyce, que estava exposto na vitrine. Diante da recusa, o soldado ameaçou confiscar todo o estoque da livraria. A Shakespeare fechou na mesma tarde. Seus livros foram escondidos, e depois todos comprados por George Whitman, segundo dono da livraria, aberta até hoje no número 37 da rue de la Bûcherie, ao lado da catedral de Notre Dame, em Paris, onde Whitman tenta perpetuar o charme da livraria fundada por Sylvia Beach (1887-1962).

Um dos costumes herdados, são as camas vagas. A atual Shakespeare possui treze leitos vagos. Vagos, bem a verdade, não estão. Existem muitos interessados em pousar na livraria mais cult do mundo. Existe sempre a possibilidade de estar passeando por lá, lendo um livro ou tomando um chá com algum aspirante à Joyce desse século. George Whitman, de 93 anos, herdou da primeira dona, a mania de fazer dos afazeres da loja, parte da rotina dos transeuntes. Todos são convidados a limpar o chão, arrumar as prateleiras, "em troca da tal infinita promessa do desconhecido". Muitos viajam milhares de quilômetros e vêm procurar abrigos nos corredores da Shakespeare. Whitman deixa, mas com uma condição: ler um livro por dia. O jornalista Jeremy Mercer topou a troca. Morou e trabalhou na livraria por meses, ganhou estadia gratuita, convivência com bibliófilos, bibliomaníacos e curiosos de todas as partes do mundo. O resultado disso, Um Livro Por Dia, Minha temporada parisiense na Shakespeare and Company, outra novidade da editora Casa da Palavra. Os lançamentos são o tipo de livro que os bibliomaníacos não podem perder. Lemos para não morrer incompletos.

Relato de escritor vê Shakespeare and Company como refúgio
Adriano Shwartz
Folha de S. Paulo, 12.07.2007

Crítica e memória
A Shakespeare and Company, em Paris, é uma das livrarias mais famosas do mundo. O sucesso se deve a uma série de peculiaridades e, acima de tudo, à criadora da loja, Sylvia Beach (1887-1962), e a seu sucessor, George Whitman (1913). Este, com suas manias e sua sabedoria, gera boa parte da força de Um Livro por Dia, as memórias dos meses em que o jornalista e escritor Jeremy Mercer morou no lugar.
Inaugurada em 1919, para ser um local em que se encontrassem livros em inglês em Paris, a loja logo se tornou ponto de encontro de autores como F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein e Ezra Pond. Foi lá também que se arrumou dinheiro para a primeira publicação de Ulisses, de James Joyce, recusado anteriormente por inúmeros editores. Essa primeira vida da livraria durou até 1941, quando os nazistas ocuparam a cidade.
Dez anos depois, do outro lado do Sena, em frente à Notre-Dame, George abria Le Mistral, rebatizada, em 1964, como Shakespeare and Company. Devoto de Sylvia Beach, como afirma Mercer, o livreiro fazia uma homenagem e reafirmava um estilo de levar adiante um negócio no qual o dinheiro é sempre o fator menos importante. Nessa segunda vida, que dura até hoje, passaram por lá Henry Miller, Anaïs Nin, Samuel Beckett, William Burroughs, Allan Ginsberg e outros escritores (segundo George, mais de 40 mil), muitos dos quais convidados, depois de apresentar uma autobiografia, a ficar por ali, em uma das camas espalhadas pela labiríntica loja, ajudar no trabalho, ler o máximo possível e escrever.
Foi o que aconteceu com Mercer, um jornalista policial canadense com a vida então bem estilhaçada, em janeiro de 2000.
Gente estranha
Um Livro por Dia está montado com cenas alternadas do dia-a-dia da livraria e de lembranças de vivências dos personagens que circulam no lugar - o que propicia ao autor dezenas de ótimas histórias, já que não faltam ali homens e mulheres exóticas e casos curiosos. A grande figura, contudo, é mesmo George Whitman, que reaparece a todo instante no texto, com seu ideário anarquista e comunista e com uma paixão intensa por livros e mulheres. Daí a boa definição de Mercer: No final, sim, é uma livraria famosa, e, sim, sua importância literária não é pequena. Mas, acima de tudo, a Shakespeare and Company é um refúgio, como a igreja do outro lado do rio. Um lugar onde o proprietário permite que todos peguem o que precisam e dêem o que podem.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP

A livraria mais charmosa do mundo
Ivan Cláudio
IstoÉ, 04.07.2007

Nesses tempos atuais de shopping centers e megastores, a sobrevivência em Paris de uma livraria como a Shakeaspeare and Company parece um milagre de preservação – tanto de patrimônio histórico quanto literário. Fundada em 1951, ela se mantém firme num charmoso quarteirão da rive guache, às margens do Sena e com vista para a catedral de Notre Dame. Pelas suas salas entulhadas de livros raros já circularam escritores do porte de Henry Miller, Samuel Beckett e Anaïs Nin.
George Whitman
Em seus concorridos saraus de leitura ecoaram as vozes de Lawrence Durrell e de beatniks como Allen Ginsberg, William Burroughs e Gregory Corso – sendo que alguns desses escritores chegaram a morar no local, uma vez que, além de livraria, a Shakespeare and Company funciona como hotel barato para autores iniciantes – estima-se que nesses 56 anos de vida ela tenha recebido mais de 40 mil escritores. Foi numa das 13 camas distribuídas pelos três andares do prédio que o jornalista e escritor canadense Jeremy Mercer se acomodou no inverno de 2000. Decidiu narrar essa sua experiência em Um livro por dia – minha temporada parisiense na Shakespeare and Company (322 págs., R$ 39,90), que chega esta semana às livrarias brasileiras.

O lema da livraria, em duas frases: “Seja gentil com estranhos, pois eles podem ser anjos disfarçados” e “Dê o que pode, pegue o que precisar”. Essas são as máximas do americano George Whitman, 93 anos, fundador da loja, que pedia a seus hóspedes que ajudassem na limpeza e no atendimento a clientes. Mais importante: pedia que lessem um livro por dia. Ele não tem o menor parentesco com o poeta americano Walt Whitman, mas sempre se aproveitou da coincidência nos sobrenomes para impressionar os freqüentadores da casa – dizia que era neto ilegítimo do autor de Folhas da relva. Mulherengo e sedutor, quem não resistiu aos encantos de Whitman foi Anaïs Nin, amante de Henry Miller. “Miller e Anaïs estavam sempre lá e a intimidade do rela- FREGUESES FAMOSOS ALLEN GINSBERG O poeta beatnik, autor de Uivo, precisava se embriagar para declamar a obra JAMES JOYCE Foi graças a Sylvia Beach, da antiga livraria Shakespeare and Co., que Ulisses foi publicado ANAÏS NIN A amante de Henry Miller foi uma das conquistas de George Whitman, dono da livraria SAMUEL BECKETT Econômico nas palavras como mostram seus livros, ele não falava: ficava só olhando Whitman HENRY MILLER O autor de Sexus era freqüentador assíduo da livraria, “o país das maravilhas dos livros” ERNEST HEMINGWAY Em Paris é uma festa ele dedica um capítulo à primeira Shakespeare and Company cionamento de George com ela ainda é tema de grande especulação”, escreve Mercer.

Era debaixo de colchões ou entre livros que Whitman guardava a maior parte do dinheiro que ganhava e essa mania fez com que o local se tornasse um dos alvos prediletos de ladrões. Havia também os “ladrões” letrados como o beatnik Gregory Corso, que gatunava edições raras para vender e, assim, abastecer o seu vício em heroína. Entre os títulos que hoje estão na Shakespeare and Company figuram as primeiras edições de Ulisses (James Joyce), que foram lançadas com o selo da própria livraria – não a atual, da rue da la Bûcherie 37, mas sua antecessora, que ficava no bairro de Saint- German-des-Prés. Criada por Sylvia Beach (1887-1962), essa casa original, cujo nome vinha do fato de vender livros em inglês, era visitada por Ernest Hemingway, que lhe dedicou um capítulo em Paris é uma festa. Em 1941 ela foi fechada pelos nazistas e, três anos depois, reaberta pessoalmente pelo próprio Hemingway, após a desocupação alemã. Whitman comprou então todo o acervo e adotou o mesmo nome Shakespeare and Company. Ele diz que “administra uma utopia socialista disfarçada em livraria”.