227) Douglas North sobre as sociedades abertas
Uma resenha sobre um livro importante:
Douglass North, John Joseph Wallis, Barry R. Weingast:
Violence and Social Orders - A Conceptual Framework for Interpreting Recorded Human History
(Cambridge University Press, 2009)
As elites, a dominação e a mudança
Ricardo Abramovay
Valor Econômico, 28/08/2009
O grande trunfo das sociedades de acesso aberto está na eficiência adaptativa, que concilia poder e participação.
É pela maneira como enfrentam o problema da violência que as sociedades moldam a interação humana e definem as formas de sua organização política e econômica. Nos últimos dez mil anos, a humanidade conheceu fundamentalmente duas maneiras de conter a violência. A que durou mais tempo é a ordem de acesso limitado ou estado natural, típico tanto da Mesopotâmia como da Grã-Bretanha sob os Tudors ou do império asteca. Na verdade, é em sociedades de acesso limitado que vivem, até hoje, 85% da humanidade em 175 países. O traço central desses estados naturais é que sua estabilidade vem de uma coalizão de forças cujos membros possuem privilégios (em alguns casos, até direitos) especiais. O poder militar é disperso entre vários grupos, que renunciam a seu uso estabelecendo acordos para obter ganhos em atividades econômicas. Mas esses acordos são estritamente fechados e personalizados. É somente nos últimos 150 anos que algumas poucas sociedades formaram estados de acesso aberto, em que os processos de dominação social são despersonalizados e a concorrência no plano da política e da economia abre caminho a inovações que resultam em melhorias espetaculares no nível de vida. Daí decorrem duas questões centrais: o que permitiu que da ordem formada por estados naturais emergissem sociedades marcadas pelo acesso aberto e por que essa transição ficou limitada a um número tão restrito de países?
Aos 88 anos de idade e detentor do Prêmio Nobel de Economia de 1993, - um livro que certamente será referência nas ciências sociais do século XXI.
Seu ponto de partida é que a violência só pode ser controlada pelo interesse das elites em formas de exploração econômica que lhes tragam mais renda que aquela propiciada pelo uso das armas. É somente nas sociedades de acesso aberto que existe um real monopólio da violência por parte do Estado. Nas de acesso restrito, a violência é dispersa e o desafio é encontrar os meios que permitam aos grupos dominantes explorar oportunidades de ganho que os levem a renunciar a seu uso. O principal meio para tanto consiste na restrição da possibilidade de formar organizações a um pequeno número de indivíduos. Daí a profunda dependência e promiscuidade entre organizações privadas e públicas, característica das sociedades de acesso fechado.
Até o início do século XIX, criar empresas ou formar uma organização política, por exemplo, era um privilégio, cuja concessão vinha do Estado. Foi a partir de então, e inicialmente apenas em três países (Grã-Bretanha, França e Estados Unidos), que as elites se submeteram a leis universais. Ao mesmo tempo, generaliza-se a possibilidade de criar organizações independentes do Estado e consolida-se o controle político sobre o poder militar. O monopólio da violência é uma consequência e não uma precondição da formação das democracias modernas.
A questão central do livro é: se as elites estabilizam seu poder com base em privilégios especiais, em formas personalizadas de dominação e em restrições a construir organizações, como é possível que os estados de acesso fechado produzam as premissas de uma ordem social apoiada na impessoalidade e na abertura de oportunidades a segmentos cada vez mais amplos? A resposta é que em sociedades de acesso fechado, para garantir as prerrogativas das elites são necessárias organizações cuja expansão acaba exigindo a definição não apenas de privilégios, mas também de direitos dessas elites. Ao mesmo tempo, criam-se condições para que se ampliem as oportunidades de ganho para segmentos maiores das próprias elites dominantes, com base em processos competitivos, o que exige um novo arranjo institucional, em que as formas despersonalizadas de dominação passam a ter primazia. A democracia e o desenvolvimento não são nem renúncia dos grupos dominantes aos seus interesses nem concessões que eles fazem às pressões das massas. São novas modalidades de dominação, em que as elites passam a empregar organizações e métodos de controle impessoais e nas quais se amplia de maneira exponencial a possibilidade de formar organizações não só às elites, mas ao conjunto da população.
O livro tem a ambição de propor nada menos que uma nova agenda de pesquisa para as ciências sociais, no centro da qual estão as maneiras como diferentes sociedades lidam com a violência. Três conclusões importantes se destacam. Em primeiro lugar, o desenvolvimento não se resume a acrescentar "mais capital ou a transplantar para uma sociedade instituições corretas como democracia, direitos de propriedade, mercados ou leis". Sem que se criem condições que despertem, nos próprios grupos dominantes, o interesse por abrir as oportunidades de estimular organizações, o receituário da democracia formal (eleições, mercados, leis, etc.) pode ser um tiro pela culatra. Desenvolvimento supõe a compreensão da cultura e da história dos países e não fórmulas prontas. A segunda conclusão é que sociedades de acesso aberto se caracterizam por Estados fortes, com destacada intervenção na vida econômica e, sobretudo, capacidade de oferecer, em bases impessoais, bens públicos que contribuam para reduzir a desigualdade e ampliar o acesso a oportunidades de geração de renda. Por fim, e mais importante: os estados naturais mostraram-se extremamente resilientes, com seus milhares de anos de vida, e não se pode garantir que as sociedades de acesso aberto vão perdurar. Mas seu grande trunfo é que possuem maior eficiência adaptativa que qualquer outra forma de organização social conhecida anteriormente. Não se trata de uma apologia acrítica da economia de mercado e sim de uma poderosa análise histórica sobre as razões que levam as elites a ampliar as bases legais e organizativas de sua dominação para, por aí, abrir possibilidades extraordinariamente ricas de participação e de mudança social.
Ricardo Abramovay, é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa), pesquisador do CNPq e da Fapesp. www.econ.fea.usp.br/abramovay
Douglass North, John Joseph Wallis, Barry R. Weingast:
Violence and Social Orders - A Conceptual Framework for Interpreting Recorded Human History
(Cambridge University Press, 2009)
As elites, a dominação e a mudança
Ricardo Abramovay
Valor Econômico, 28/08/2009
O grande trunfo das sociedades de acesso aberto está na eficiência adaptativa, que concilia poder e participação.
É pela maneira como enfrentam o problema da violência que as sociedades moldam a interação humana e definem as formas de sua organização política e econômica. Nos últimos dez mil anos, a humanidade conheceu fundamentalmente duas maneiras de conter a violência. A que durou mais tempo é a ordem de acesso limitado ou estado natural, típico tanto da Mesopotâmia como da Grã-Bretanha sob os Tudors ou do império asteca. Na verdade, é em sociedades de acesso limitado que vivem, até hoje, 85% da humanidade em 175 países. O traço central desses estados naturais é que sua estabilidade vem de uma coalizão de forças cujos membros possuem privilégios (em alguns casos, até direitos) especiais. O poder militar é disperso entre vários grupos, que renunciam a seu uso estabelecendo acordos para obter ganhos em atividades econômicas. Mas esses acordos são estritamente fechados e personalizados. É somente nos últimos 150 anos que algumas poucas sociedades formaram estados de acesso aberto, em que os processos de dominação social são despersonalizados e a concorrência no plano da política e da economia abre caminho a inovações que resultam em melhorias espetaculares no nível de vida. Daí decorrem duas questões centrais: o que permitiu que da ordem formada por estados naturais emergissem sociedades marcadas pelo acesso aberto e por que essa transição ficou limitada a um número tão restrito de países?
Aos 88 anos de idade e detentor do Prêmio Nobel de Economia de 1993, - um livro que certamente será referência nas ciências sociais do século XXI.
Seu ponto de partida é que a violência só pode ser controlada pelo interesse das elites em formas de exploração econômica que lhes tragam mais renda que aquela propiciada pelo uso das armas. É somente nas sociedades de acesso aberto que existe um real monopólio da violência por parte do Estado. Nas de acesso restrito, a violência é dispersa e o desafio é encontrar os meios que permitam aos grupos dominantes explorar oportunidades de ganho que os levem a renunciar a seu uso. O principal meio para tanto consiste na restrição da possibilidade de formar organizações a um pequeno número de indivíduos. Daí a profunda dependência e promiscuidade entre organizações privadas e públicas, característica das sociedades de acesso fechado.
Até o início do século XIX, criar empresas ou formar uma organização política, por exemplo, era um privilégio, cuja concessão vinha do Estado. Foi a partir de então, e inicialmente apenas em três países (Grã-Bretanha, França e Estados Unidos), que as elites se submeteram a leis universais. Ao mesmo tempo, generaliza-se a possibilidade de criar organizações independentes do Estado e consolida-se o controle político sobre o poder militar. O monopólio da violência é uma consequência e não uma precondição da formação das democracias modernas.
A questão central do livro é: se as elites estabilizam seu poder com base em privilégios especiais, em formas personalizadas de dominação e em restrições a construir organizações, como é possível que os estados de acesso fechado produzam as premissas de uma ordem social apoiada na impessoalidade e na abertura de oportunidades a segmentos cada vez mais amplos? A resposta é que em sociedades de acesso fechado, para garantir as prerrogativas das elites são necessárias organizações cuja expansão acaba exigindo a definição não apenas de privilégios, mas também de direitos dessas elites. Ao mesmo tempo, criam-se condições para que se ampliem as oportunidades de ganho para segmentos maiores das próprias elites dominantes, com base em processos competitivos, o que exige um novo arranjo institucional, em que as formas despersonalizadas de dominação passam a ter primazia. A democracia e o desenvolvimento não são nem renúncia dos grupos dominantes aos seus interesses nem concessões que eles fazem às pressões das massas. São novas modalidades de dominação, em que as elites passam a empregar organizações e métodos de controle impessoais e nas quais se amplia de maneira exponencial a possibilidade de formar organizações não só às elites, mas ao conjunto da população.
O livro tem a ambição de propor nada menos que uma nova agenda de pesquisa para as ciências sociais, no centro da qual estão as maneiras como diferentes sociedades lidam com a violência. Três conclusões importantes se destacam. Em primeiro lugar, o desenvolvimento não se resume a acrescentar "mais capital ou a transplantar para uma sociedade instituições corretas como democracia, direitos de propriedade, mercados ou leis". Sem que se criem condições que despertem, nos próprios grupos dominantes, o interesse por abrir as oportunidades de estimular organizações, o receituário da democracia formal (eleições, mercados, leis, etc.) pode ser um tiro pela culatra. Desenvolvimento supõe a compreensão da cultura e da história dos países e não fórmulas prontas. A segunda conclusão é que sociedades de acesso aberto se caracterizam por Estados fortes, com destacada intervenção na vida econômica e, sobretudo, capacidade de oferecer, em bases impessoais, bens públicos que contribuam para reduzir a desigualdade e ampliar o acesso a oportunidades de geração de renda. Por fim, e mais importante: os estados naturais mostraram-se extremamente resilientes, com seus milhares de anos de vida, e não se pode garantir que as sociedades de acesso aberto vão perdurar. Mas seu grande trunfo é que possuem maior eficiência adaptativa que qualquer outra forma de organização social conhecida anteriormente. Não se trata de uma apologia acrítica da economia de mercado e sim de uma poderosa análise histórica sobre as razões que levam as elites a ampliar as bases legais e organizativas de sua dominação para, por aí, abrir possibilidades extraordinariamente ricas de participação e de mudança social.
Ricardo Abramovay, é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa), pesquisador do CNPq e da Fapesp. www.econ.fea.usp.br/abramovay
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