223) Ascensao do Dinheiro, Niall Ferguson
Dinheiro, para o bem e o mal
Oscar Pilagallo
Valor Econômico, 07/08/2009
Niall Ferguson:
A Ascensão do Dinheiro: A História Financeira do Mundo
Editora Planeta. 418 págs., R$ 49,90.
Niall Ferguson: a convulsão de hoje, parte da narrativa secular do progresso humano, deverá dar origem a instituições financeiras capazes de lidar com as novas incertezas
Quando Niall Ferguson lançou "A Ascensão do Dinheiro" nos países de língua inglesa, no ano passado, a impressão que ficou foi que a oportunidade não poderia ter sido pior. Com a crise financeira no auge, o título parecia estar na contramão da realidade. Agora, um ano depois, a chegada às livrarias da tradução para o português coincide com um momento de desanuviação do cenário econômico internacional, e o título do livro parece mais em sintonia com os tempos.
As duas impressões, porém, passam ao largo da intenção do autor. Ferguson colocou o ponto final no trabalho em junho do ano passado, e não podia ter deixado de levar em consideração a crise atual. Ele aborda a bolha do mercado imobiliário americano, as quebras de instituições bancárias, a injeção de dinheiro público para tentar conter o pânico, mas "A Ascensão do Dinheiro" não é, em essência, sobre a conjuntura atual.
Isso não significa que o livro não possa ser lido tendo-se em mente o noticiário dos jornais. Ao contrário, ao oferecer um sólido panorama histórico, Ferguson acrescenta uma nova perspectiva e ajuda a compreender outras dimensões da crise. Enquanto os analistas fecham o foco nas últimas estatísticas, Ferguson o amplia e, assim, faz o leitor se lembrar dos conceitos essenciais sobre o dinheiro e refletir sobre sua natureza, que está na origem desta e das outras crises.
Ferguson está longe de ser um Nouriel Roubini, mais conhecido como Doutor Apocalipse, o economista que ganhou notoriedade por prever, em 2006, a crise atual. Mas também se distanciou do otimismo que dominava os mercados naquela época. Ele conta que em novembro de 2006, numa palestra nas Bahamas, advertiu a plateia de executivos para o risco de um drástico declínio da liquidez e recomendou cautela. "Fui tratado sumariamente como um alarmista", afirma.
Para poder falar do dinheiro hoje, o historiador britânico remonta aos tempos em que o moeda surgiu, no século VII a. C., no reino da Lídia, onde havia em abundância, nos rios, o electro, uma liga natural de ouro e prata, material propício para a confecção das primeiras moedas. De lá para cá, Ferguson passeia por sociedades em que foram utilizadas as formas mais exóticas de moeda: pedras, conchas, sal, papel.
Não há novidade nessa primeira parte, e nem o autor poderia ser cobrado por isso. A mesma história é encontrada em livros como "Moeda: De Onde Veio para Onde Foi", de John Kenneth Galbraith, "A História do Dinheiro", de Jack Weatherford, ou até "Da Moeda", escrito em 1751 por Ferdinando Galiani, para citar alguns títulos disponíveis.
Ferguson acrescenta algo em relação aos outros autores? Apesar de usar basicamente as mesmas fontes, a resposta é afirmativa. O conteúdo não é, nem poderia ser, diferente. Mas a maneira de contar a história não é a mesma. "A Ascensão do Dinheiro" é uma obra que, desde a concepção, visou os formatos de livro e de televisão, tendo sido produzido como um documentário para o Channel 4 britânico. Embora script e texto não sejam os mesmos, o livro carrega muito da linguagem visual.
A observação não desmerece a obra. A abordagem não apenas torna o conteúdo mais didático, uma imposição da TV. Mais importante é o fato de um assunto árido e abstrato ganhar cenários em que atuam homens de verdade, como o presidente do banco central americano, e de ficção, como o agiota de Shakespeare em "O Mercador de Veneza".
A história do dinheiro rende um baú de curiosidades. Muitas, no entanto, não passam disso e são irrelevantes do ponto de vista monetário. É tão fácil agradar ao leitor ávido por anedotas quanto se perder em historietas que não ajudam a dar um norte para a narração. Ferguson escapa da armadilha. Repassa o repertório conhecido - o surgimento dos bancos na península italiana, o impacto da descoberta da prata no Peru, a especulação com as tulipas na Holanda, as conexões entre moeda e revoluções - mas não anda em círculos e faz a história avançar ao ponto que quer chegar.
Qual o ponto? Este: "A ascensão do dinheiro tem sido uma das forças propulsoras por trás do progresso humano". Para o autor, as economias que combinaram as inovações institucionais permitidas pelo uso do dinheiro - bancos, mercados de títulos, bolsas de valores, seguro e democratização da posse de imóveis - "tiveram melhor desempenho ao longo do tempo do que aquelas que não o fizeram, por que a intermediação financeira geralmente permite uma alocação mais eficiente de recursos do que, digamos, o feudalismo ou o planejamento central".
A tese não é mais polêmica. Até há pouco tempo, alguns comunistas poderiam contestá-la - embora sociedades comunistas não tenham, na prática, prescindido do dinheiro. Hoje, não mais. Ao defendê-la, no entanto, Ferguson faz aproximações históricas que se revelam frágeis. Lembra corretamente que os incas só atribuíam qualidades estéticas aos metais raros. E conclui: "O trabalho era a unidade de valor no Império Inca, exatamente como mais tarde foi suposto ser numa sociedade comunista. E, exatamente como no comunismo, a economia dependia de frequentes planos centrais e do trabalho forçado". Ora, o trabalho forçado não é, como se pode deduzir do raciocínio de Ferguson, exclusividade de sociedades refratárias à ideia da monetização, sejam elas incas, comunistas ou alguma tribo perdida na Amazônia.
No conjunto, porém, a argumentação é consistente. Escorado na história, Ferguson acredita que a crise atual dará origem a instituições financeiras capazes de lidar com as novas incertezas. É uma adaptação do conceito da destruição criativa de Joseph Schumpeter. Mas há uma diferença: as garantias implícitas aos bancos considerados grandes demais para quebrar. E aqui Ferguson levanta uma questão que continua em pauta. Além de a ajuda oficial ser um "perigo moral" (pois encoraja a frouxidão na análise dos riscos, "na assunção de que o Estado intervirá para evitar a iliquidez"), ela ameaça a seleção natural, permitindo a sobrevivência de instituições mais fracas. Da história contada por Ferguson pode-se deduzir que medidas de precaução não deveriam ser excessivas a ponto de eliminar a possibilidade de extinção de instituições. Na prática, pode haver divergência sobre a calibragem, mas é difícil discordar, em tese, de Niall Ferguson.
Oscar Pilagallo é jornalista e autor de, entre outros livros, "A Aventura do Dinheiro - Uma Crônica da História Milenar da Moeda" (Publifolha)
Oscar Pilagallo
Valor Econômico, 07/08/2009
Niall Ferguson:
A Ascensão do Dinheiro: A História Financeira do Mundo
Editora Planeta. 418 págs., R$ 49,90.
Niall Ferguson: a convulsão de hoje, parte da narrativa secular do progresso humano, deverá dar origem a instituições financeiras capazes de lidar com as novas incertezas
Quando Niall Ferguson lançou "A Ascensão do Dinheiro" nos países de língua inglesa, no ano passado, a impressão que ficou foi que a oportunidade não poderia ter sido pior. Com a crise financeira no auge, o título parecia estar na contramão da realidade. Agora, um ano depois, a chegada às livrarias da tradução para o português coincide com um momento de desanuviação do cenário econômico internacional, e o título do livro parece mais em sintonia com os tempos.
As duas impressões, porém, passam ao largo da intenção do autor. Ferguson colocou o ponto final no trabalho em junho do ano passado, e não podia ter deixado de levar em consideração a crise atual. Ele aborda a bolha do mercado imobiliário americano, as quebras de instituições bancárias, a injeção de dinheiro público para tentar conter o pânico, mas "A Ascensão do Dinheiro" não é, em essência, sobre a conjuntura atual.
Isso não significa que o livro não possa ser lido tendo-se em mente o noticiário dos jornais. Ao contrário, ao oferecer um sólido panorama histórico, Ferguson acrescenta uma nova perspectiva e ajuda a compreender outras dimensões da crise. Enquanto os analistas fecham o foco nas últimas estatísticas, Ferguson o amplia e, assim, faz o leitor se lembrar dos conceitos essenciais sobre o dinheiro e refletir sobre sua natureza, que está na origem desta e das outras crises.
Ferguson está longe de ser um Nouriel Roubini, mais conhecido como Doutor Apocalipse, o economista que ganhou notoriedade por prever, em 2006, a crise atual. Mas também se distanciou do otimismo que dominava os mercados naquela época. Ele conta que em novembro de 2006, numa palestra nas Bahamas, advertiu a plateia de executivos para o risco de um drástico declínio da liquidez e recomendou cautela. "Fui tratado sumariamente como um alarmista", afirma.
Para poder falar do dinheiro hoje, o historiador britânico remonta aos tempos em que o moeda surgiu, no século VII a. C., no reino da Lídia, onde havia em abundância, nos rios, o electro, uma liga natural de ouro e prata, material propício para a confecção das primeiras moedas. De lá para cá, Ferguson passeia por sociedades em que foram utilizadas as formas mais exóticas de moeda: pedras, conchas, sal, papel.
Não há novidade nessa primeira parte, e nem o autor poderia ser cobrado por isso. A mesma história é encontrada em livros como "Moeda: De Onde Veio para Onde Foi", de John Kenneth Galbraith, "A História do Dinheiro", de Jack Weatherford, ou até "Da Moeda", escrito em 1751 por Ferdinando Galiani, para citar alguns títulos disponíveis.
Ferguson acrescenta algo em relação aos outros autores? Apesar de usar basicamente as mesmas fontes, a resposta é afirmativa. O conteúdo não é, nem poderia ser, diferente. Mas a maneira de contar a história não é a mesma. "A Ascensão do Dinheiro" é uma obra que, desde a concepção, visou os formatos de livro e de televisão, tendo sido produzido como um documentário para o Channel 4 britânico. Embora script e texto não sejam os mesmos, o livro carrega muito da linguagem visual.
A observação não desmerece a obra. A abordagem não apenas torna o conteúdo mais didático, uma imposição da TV. Mais importante é o fato de um assunto árido e abstrato ganhar cenários em que atuam homens de verdade, como o presidente do banco central americano, e de ficção, como o agiota de Shakespeare em "O Mercador de Veneza".
A história do dinheiro rende um baú de curiosidades. Muitas, no entanto, não passam disso e são irrelevantes do ponto de vista monetário. É tão fácil agradar ao leitor ávido por anedotas quanto se perder em historietas que não ajudam a dar um norte para a narração. Ferguson escapa da armadilha. Repassa o repertório conhecido - o surgimento dos bancos na península italiana, o impacto da descoberta da prata no Peru, a especulação com as tulipas na Holanda, as conexões entre moeda e revoluções - mas não anda em círculos e faz a história avançar ao ponto que quer chegar.
Qual o ponto? Este: "A ascensão do dinheiro tem sido uma das forças propulsoras por trás do progresso humano". Para o autor, as economias que combinaram as inovações institucionais permitidas pelo uso do dinheiro - bancos, mercados de títulos, bolsas de valores, seguro e democratização da posse de imóveis - "tiveram melhor desempenho ao longo do tempo do que aquelas que não o fizeram, por que a intermediação financeira geralmente permite uma alocação mais eficiente de recursos do que, digamos, o feudalismo ou o planejamento central".
A tese não é mais polêmica. Até há pouco tempo, alguns comunistas poderiam contestá-la - embora sociedades comunistas não tenham, na prática, prescindido do dinheiro. Hoje, não mais. Ao defendê-la, no entanto, Ferguson faz aproximações históricas que se revelam frágeis. Lembra corretamente que os incas só atribuíam qualidades estéticas aos metais raros. E conclui: "O trabalho era a unidade de valor no Império Inca, exatamente como mais tarde foi suposto ser numa sociedade comunista. E, exatamente como no comunismo, a economia dependia de frequentes planos centrais e do trabalho forçado". Ora, o trabalho forçado não é, como se pode deduzir do raciocínio de Ferguson, exclusividade de sociedades refratárias à ideia da monetização, sejam elas incas, comunistas ou alguma tribo perdida na Amazônia.
No conjunto, porém, a argumentação é consistente. Escorado na história, Ferguson acredita que a crise atual dará origem a instituições financeiras capazes de lidar com as novas incertezas. É uma adaptação do conceito da destruição criativa de Joseph Schumpeter. Mas há uma diferença: as garantias implícitas aos bancos considerados grandes demais para quebrar. E aqui Ferguson levanta uma questão que continua em pauta. Além de a ajuda oficial ser um "perigo moral" (pois encoraja a frouxidão na análise dos riscos, "na assunção de que o Estado intervirá para evitar a iliquidez"), ela ameaça a seleção natural, permitindo a sobrevivência de instituições mais fracas. Da história contada por Ferguson pode-se deduzir que medidas de precaução não deveriam ser excessivas a ponto de eliminar a possibilidade de extinção de instituições. Na prática, pode haver divergência sobre a calibragem, mas é difícil discordar, em tese, de Niall Ferguson.
Oscar Pilagallo é jornalista e autor de, entre outros livros, "A Aventura do Dinheiro - Uma Crônica da História Milenar da Moeda" (Publifolha)
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