220) Perseguindo livros e autores
A liberdade ofende
Nelson Ascher
Revista Veja, 19.07.2009
Um romance sobre uma das mulheres de Maomé é o mais recente alvo do cerceamento dos fundamentalistas – e de seus cúmplices esquerdistas – ao direito de expressão
Aisha, uma jovem que teria vivido durante o século VII na atual Arábia Saudita, foi, segundo as fontes reconhecidas pelos muçulmanos, a terceira mulher de Maomé, fundador de sua religião, o Islã. Foi seu pai que, tornando-se sucessor imediato de Maomé, inaugurou a disputa na qual se opõem os sunitas, que aceitam essa linhagem, e os xiitas, que consideram Ali, primo e genro do profeta, seu legítimo sucessor.A Joia de Medina (tradução de Ana Luiza Dantas Borges; Record; 434 páginas; 39 reais), da americana Sherry Jones, romanceia a vida dessa personagem central da narrativa islâmica. É uma incursão despretensiosa por épocas, lugares e entre pessoas das quais se sabe pouco. Nada aqui fugiria do corriqueiro não fosse a escolha da protagonista. Jones poderia ter optado pela mulher de um profeta bíblico, de um imperador romano ou chinês ou do rei Arthur – e nenhuma dessas opções teria lhe trazido problemas. Lidar, porém, com a narrativa sagrada do Islã – e tanto faz se isso é feito com erudição ou leviandade – é se submeter a consequências imprevisíveis. A obra pode ser ignorada e esquecida ou pode acender barris de pólvora em cantos inesperados do planeta.
No caso deste romance, nem chegaram a ser necessárias as reações públicas. A megaeditora americana Random House comprou, em 2007, os direitos desse e de outro livro da autora por 100 000 dólares. Com as provas prontas, mandou-as a vários possíveis resenhistas, entre eles Denise Spellberg, professora de Estudos Islâmicos na Universidade do Texas, que soou o alarme de que havia, prestes a sair, um livro que zombava dos muçulmanos e de sua história. Com a pressão contra o romance crescendo internet afora, a editora cancelou a publicação, que afinal foi assumida, nos Estados Unidos e Inglaterra, por editoras menores. Em setembro de 2008, a casa de Martin Rynja, da editora britânica Gibson Square, foi atacada com bombas incendiárias. E já se iniciou pela internet uma campanha no Brasil contra a versão nacional do livro.
A insanidade que tem levado palavras ditas ou impressas, desenhos e caricaturas a desencadear reações violentas começou oficialmente quando, em 1989, o aiatolá Khomeini, do Irã, proclamou uma fatwa contra o recém-publicado Os Versos Satânicos e seu autor, Salman Rushdie, que ele condenava à morte. Se, então, os progressistas em geral e a comunidade artístico-literária em particular se uniram na defesa do escritor, conforme os casos foram se repetindo as reações mudaram – até que, durante a crise das charges de Maomé que, publicadas em 2005 num jornal dinamarquês, resultaram em protestos exaltados entre populações islâmicas, a intelectualidade e a esquerda, quando não se calaram, tomaram o partido daqueles que exigiam a censura.
Por estranho que soe, respeitar as sensibilidades dos seguidores de uma e apenas uma religião se converteu em algo politicamente correto. A esquerda, que, herdeira secularista do iluminismo, criticou sempre o conservadorismo religioso, tem reagido de forma tíbia e, às vezes, até endossado as limitações crescentes que fanáticos e parte do clero muçulmano buscam impor às sociedades abertas do planeta. Talvez o enigma se explique devido ao fato de que, na mitologia terceiro-mundista atual, o Islã é a fé dos novos oprimidos, os que assumiram o papel há muito descartado pelo proletariado industrial.
Acontece que a liberdade de expressão é direito fundamental numa sociedade moderna e democrática. Há milhares de religiões no mundo, e aquilo que numa delas é verdade indiscutível não raro é falsidade ofensiva para as demais. Como conciliar tais desavenças? Há duas maneiras: impondo uma crença uniforme (ou a descrença) a toda a coletividade ou mantendo a religião confinada à esfera privada, liberando de forma igualitária todos os pontos de vista. Dizer o que quer que seja sobre uma religião e seus personagens mitológicos ou históricos não equivale, de modo algum, a atacar seus fiéis. Apesar de tudo, o conflito de civilizações talvez seja realmente inevitável, não porque a modernidade não tolera gente, grupos, mesmo nações apegadas a tradições reais ou inventadas, mas porque estes se consideram ameaçados (e, pior, seduzidos) pelas sociedades liberais e avançadas.
Nelson Ascher
Revista Veja, 19.07.2009
Um romance sobre uma das mulheres de Maomé é o mais recente alvo do cerceamento dos fundamentalistas – e de seus cúmplices esquerdistas – ao direito de expressão
Aisha, uma jovem que teria vivido durante o século VII na atual Arábia Saudita, foi, segundo as fontes reconhecidas pelos muçulmanos, a terceira mulher de Maomé, fundador de sua religião, o Islã. Foi seu pai que, tornando-se sucessor imediato de Maomé, inaugurou a disputa na qual se opõem os sunitas, que aceitam essa linhagem, e os xiitas, que consideram Ali, primo e genro do profeta, seu legítimo sucessor.A Joia de Medina (tradução de Ana Luiza Dantas Borges; Record; 434 páginas; 39 reais), da americana Sherry Jones, romanceia a vida dessa personagem central da narrativa islâmica. É uma incursão despretensiosa por épocas, lugares e entre pessoas das quais se sabe pouco. Nada aqui fugiria do corriqueiro não fosse a escolha da protagonista. Jones poderia ter optado pela mulher de um profeta bíblico, de um imperador romano ou chinês ou do rei Arthur – e nenhuma dessas opções teria lhe trazido problemas. Lidar, porém, com a narrativa sagrada do Islã – e tanto faz se isso é feito com erudição ou leviandade – é se submeter a consequências imprevisíveis. A obra pode ser ignorada e esquecida ou pode acender barris de pólvora em cantos inesperados do planeta.
No caso deste romance, nem chegaram a ser necessárias as reações públicas. A megaeditora americana Random House comprou, em 2007, os direitos desse e de outro livro da autora por 100 000 dólares. Com as provas prontas, mandou-as a vários possíveis resenhistas, entre eles Denise Spellberg, professora de Estudos Islâmicos na Universidade do Texas, que soou o alarme de que havia, prestes a sair, um livro que zombava dos muçulmanos e de sua história. Com a pressão contra o romance crescendo internet afora, a editora cancelou a publicação, que afinal foi assumida, nos Estados Unidos e Inglaterra, por editoras menores. Em setembro de 2008, a casa de Martin Rynja, da editora britânica Gibson Square, foi atacada com bombas incendiárias. E já se iniciou pela internet uma campanha no Brasil contra a versão nacional do livro.
A insanidade que tem levado palavras ditas ou impressas, desenhos e caricaturas a desencadear reações violentas começou oficialmente quando, em 1989, o aiatolá Khomeini, do Irã, proclamou uma fatwa contra o recém-publicado Os Versos Satânicos e seu autor, Salman Rushdie, que ele condenava à morte. Se, então, os progressistas em geral e a comunidade artístico-literária em particular se uniram na defesa do escritor, conforme os casos foram se repetindo as reações mudaram – até que, durante a crise das charges de Maomé que, publicadas em 2005 num jornal dinamarquês, resultaram em protestos exaltados entre populações islâmicas, a intelectualidade e a esquerda, quando não se calaram, tomaram o partido daqueles que exigiam a censura.
Por estranho que soe, respeitar as sensibilidades dos seguidores de uma e apenas uma religião se converteu em algo politicamente correto. A esquerda, que, herdeira secularista do iluminismo, criticou sempre o conservadorismo religioso, tem reagido de forma tíbia e, às vezes, até endossado as limitações crescentes que fanáticos e parte do clero muçulmano buscam impor às sociedades abertas do planeta. Talvez o enigma se explique devido ao fato de que, na mitologia terceiro-mundista atual, o Islã é a fé dos novos oprimidos, os que assumiram o papel há muito descartado pelo proletariado industrial.
Acontece que a liberdade de expressão é direito fundamental numa sociedade moderna e democrática. Há milhares de religiões no mundo, e aquilo que numa delas é verdade indiscutível não raro é falsidade ofensiva para as demais. Como conciliar tais desavenças? Há duas maneiras: impondo uma crença uniforme (ou a descrença) a toda a coletividade ou mantendo a religião confinada à esfera privada, liberando de forma igualitária todos os pontos de vista. Dizer o que quer que seja sobre uma religião e seus personagens mitológicos ou históricos não equivale, de modo algum, a atacar seus fiéis. Apesar de tudo, o conflito de civilizações talvez seja realmente inevitável, não porque a modernidade não tolera gente, grupos, mesmo nações apegadas a tradições reais ou inventadas, mas porque estes se consideram ameaçados (e, pior, seduzidos) pelas sociedades liberais e avançadas.
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