213) Mercosul, depoimento de um dos pais fundadores
O Mercosul na sua fase ascendente (e, talvez, única)
Resenha de:
Renato L. R. Marques
Mercosul 1989-1999: depoimentos de um negociador
(Kiev: s.e., 2008, 280 p.; ISBN: 978-966-171-170-1)
Trata-se de uma edição de autor: uma coleção de artigos, de entrevistas ou de depoimentos feitos pelo diplomata gaúcho durante o período em que ele ocupou, sucessivamente, os cargos de chefe da Divisão Econômica Latino-Americana do MRE, de Secretário de Comércio Exterior do MDIC e de chefe do Departamento de Integração do MRE, entre 1989 e 1999. São duas dúzias de textos, cada um trazendo a data e o local de sua publicação ou “emissão” (no caso de depoimentos gravados), mas não, infelizmente, as circunstâncias e o contexto no qual foram produzidos. A produção amadora explica, assim, alguns dos problemas formais da obra, mas que em nada diminui o interesse para os aspectos substantivos dos temas tratados.
O autor ficou devendo uma introdução geral e talvez uma divisão temática, ou por seções, de molde a situar cada um dos textos no quadro mais geral da evolução do Mercosul em seus primeiros dez anos de existência. Outra questão organizacional é a da relativa imprecisão cronológica: a despeito de Marques situar sua compilação entre os anos de 1989 a 1999, os limites inicial e final dos textos correspondem, de fato, ao período que vai de 1991 a 2001, sendo que a última fase trata bem mais da Alca e das opções de política comercial do Brasil do que propriamente do Mercosul. Mas mesmo sem ater-se a uma estrutura temática mais racional, que poderia permitir um melhor aproveitamento dos muitos materiais aqui recolhidos, o autor prestou um bom serviço à comunidade de historiadores e de estudiosos dos fundamentos e do desenvolvimento do Mercosul, até aqui carente de estudos rigorosos nas áreas da ciência política e da história. Recomenda-se, talvez, para o futuro, uma segunda edição de características profissionais, de maneira a sanar as muitas falhas formais que apresenta este volume, feito por iniciativa do próprio autor e distribuído, provavelmente, a seus custos.
Mesmo à falta de uma inserção de cada um desses textos na história mais geral do Mercosul, os trabalhos selecionados pelo autor são importantes, na medida em que permitem uma aproximação ao que seria uma primeira “história oral” desse esquema de integração, ainda hoje carente – pelo menos no Brasil – de uma história oficial ou oficiosa que reconstitua, minuciosamente, suas diferentes etapas desde os anos de integração bilateral com a Argentina até o período atual, marcado por uma espécie de Entzauberung integracionista. O tom de vários textos é marcadamente otimista e “defensivo”, como corresponde, talvez, a questionamentos da imprensa ou da comunidade de negócios a respeito dos benefícios reais do Mercosul para a sociedade e para a economia brasileiras. Em vários outros, possivelmente voltados para platéias não especializadas, os objetivos didáticos aparecem mais explícitos, com extensas explicações sobre o funcionamento de determinados mecanismos do bloco, em face das regras multilaterais de comércio e da pequena selva burocrática na normatividade mercosuliana que o autor ajudou a construir.
Alguns dos textos tratam das relações do Mercosul com parceiros próximos – como o Chile, a Venezuela e outros países do Grupo Andino – ao passo que outros abordam problemas específicos: fundos regionais, aplicação das normas do Mercosul pelos juízes nacionais ou, ainda, o sempre presente problema institucional. Se o Brasil sempre se mostrou “ofensivo” na expansão comercial do Mercosul em direção de novos mercados, ele também se mostrou arredio em matéria institucional, opondo-se a sucessivas demandas – dos demais sócios, ou atendendo a sugestões de juristas – por maior grau de institucionalidade (que, para alguns, queria dizer supranacionalidade).
Parece ser uma regra das instituições burocráticas o fato de que problemas complexos não são jamais resolvidos: eles apenas entram no rol de itens da “agenda permanente” que passam a figurar em cada reunião do bloco: tais podem ser os casos do regime automotivo do Mercosul (mais exatamente bilateral, Brasil-Argentina), ou da eterna salvaguarda argentina imposta ao açúcar do Brasil. Aliás, falar em “regime automotivo do Mercosul” seria conceder-lhe um status superior ao merecido, como sistema de comércio bilateral administrado que de fato é, como nos velhos tempos do mercantilismo. Quanto ao açúcar, não há nada de especificamente mercosuliano em sua inadequação aos padrões do livre-comércio: trata-se, certamente, do primeiro produto na história mundial das commodities a gozar de regras especiais de proteção e subsídio em vários países da primeira revolução industrial – mais exatamente a partir do açúcar de beterraba surgido com a revolução francesa e o bloqueio continental operado pela Inglaterra – e que será, provavelmente, o último dos produtos a entrar num regime normal de comércio, talvez daqui a mais 150 anos. Bem, espera-se que, até lá, o Mercosul tenha chegado ao prometido mercado comum.
À falta de uma divisão temática ou “institucional” para este livro, o leitor é obrigado a percorrer linearmente os textos, para deles extrair alguns ensinamentos e esclarecimentos sobre aspectos pouco visíveis da história – até aqui quase secreta – do Mercosul. Essa trajetória linear corresponde, aliás, à organização mais simples do livro, sem que se possa, entretanto, discutir exaustivamente determinados problemas estruturais ou constitutivos do modelo sui generis que adotou o Mercosul ao longo de seus primeiros dez anos de existência (e ele acaba de completar a sua maioridade).
No conjunto, porém, os textos representam uma contribuição útil para a construção de uma futura história do Mercosul, com os cuidados devidos à manipulação de idéias ou opiniões que correspondem a um dos protagonistas oficiais do processo. Sim, cabe esclarecer que mesmo se o autor explicita, numa nota preliminar, que os seus argumentos representam unicamente a sua opinião pessoal, pode-se presumir que ele estivesse, cada vez, defendendo a posição oficial do governo brasileiro sobre cada um dos problemas abordados. Não é de se presumir que um representante do Itamaraty tenha idéias próprias sobre todas essas questões, ou que ele tenha “escolhido” certas “soluções” aos problemas da tarifa externa comum ou dos regimes setoriais em fase de adequação à abertura recíproca na ausência de consulta a todas as autoridades do governo. Depreende-se, aqui e ali, indiretamente, certa perplexidade ou insatisfação dos atores privados, o que revelaria carência de consulta ou coordenação com aqueles mesmos que deveriam operar a integração na prática diária: industriais, agricultores, empresários em geral, para nada falar dos estudiosos acadêmicos, provavelmente pouco consultados em todas as fases do processo.
Claramente, os textos precisam ser lidos e inseridos em seu contexto original, que é o da construção de um bloco de integração numa fase ainda ascendente, com pretensões a transformar-se em mercado comum (objetivo até agora frustrado; mas muitos duvidam que ele venha a ser concretizado um dia). Mesmo lidos com todo o cuidado de um historiador ou especialista acadêmico, não deixa de ser curioso, ao observador contemporâneo – em 2009, ou seja, uma década depois da data terminal que o autor colocou em se livro –, fazer uma leitura retrospectiva do que poderia ter sido o Mercosul e o que, efetivamente, ele veio a converter-se ao atingir a maioridade, praticamente congelado nas etapas examinadas neste livro de um dos protagonistas originais.
Um dos textos, por exemplo, datado de março de 1996, explica que “Não é o momento” de criar órgãos supranacionais, em especial um tribunal com poderes próprios (já que esse passo não seria constitucionalmente aceitável para o Brasil). Em outro, que faz um balanço da presidência brasileira e que comemora a passagem da “prova de fogo” que foi a instituição (sic) da união aduaneira, se lê que o Mercosul “consolidou-se como um agrupamento de crescente coesão interna e indiscutível capacidade de negociação externa” (p. 141). Sem comentários, nesta resenha...
Mais para o final do período, o argumento dominante na chancelaria era o de que o Brasil, sim, negociava a Alca, mas priorizava o Mercosul, por se tratar de um bloco com pretensões mais abrangentes e profundas, como o projeto de mercado comum. O temor, então (estávamos ainda 1997), era o de que a Alca provocasse “atraso, desvio ou interrupção no processo ora em curso de aperfeiçoamento da união aduaneira” (p. 169). Nunca houve, ao que parece, real interesse do Brasil pela Alca, que seria alegremente enterrada no cemitério de projetos irrealizáveis por ocasião da reunião de cúpula hemisférica de Mar del Plata, em novembro de 2005.
Naquela mesma conjuntura, o Brasil recusava a constituição de “fundos” ou a adoção de “medidas compensatórias”, sob a justificativa de que os recursos alocados competiriam com aplicações nacionais ou que esse tipo de mecanismo implicaria em instituições burocráticas onerosas (p. 217-218). A partir de 2003, como se sabe, o Brasil passou não apenas a aceitar, como a promover ativamente esse tipo de “fundo compensatório”, do qual é o maior contribuinte líquido – 70% por cento do volume global, recentemente aumentado em 100%, por decisão própria –, sem ser, obviamente, o maior beneficiário (a despeito das mesmas diferenças e desigualdades internas que justificavam a recusa no momento em que Renato Marques desenvolvia seus argumentos).
Incidentalmente – ou seja, sem que isto tenha a ver com o objeto do livro –, a comparação entre o período coberto pelo autor, todo ele voltado para a negociação e implementação dos objetivos primários do Mercosul – isto é, o acabamento da união aduaneira e o caminho na direção do mercado comum – e a fase subsequente, e atual, de abandono quase completo dessas metas “comercialistas” e a ênfase colocada em aspectos políticos ou sociais do bloco, muito nos diz sobre a inflexão que ele sofreu ao longo dos dez anos seguintes ao período aqui coberto. Teses que antes o governo do Brasil rejeitava por não pertinentes ao “espírito” ou à “essência” do Mercosul passaram a ser aceitas e até implementadas voluntariamente, como a já referida opção pela constituição de fundos compensatórios e mecanismos corretores, ou a “fuga para a frente” – tendente a construir novas instituições políticas e sociais –, em lugar de resolver questões ainda pendentes dos fundamentos econômicos incompletos e do baixo grau de abertura recíproca (paradoxalmente) do bloco.
Não se deve esperar, obviamente, um diagnóstico da situação do Mercosul, mesmo ao cabo do período coberto pelo livro, inclusive porque a natureza puramente “compilatória” da obra e a já referida lacuna de introdução ou de capítulo conclusivo não permitem tirar ensinamentos mais aprofundados. O que se tem aqui são materiais primários, minérios não processados, que devem aguardar outros insumos históricos ou lapidação por especialistas para que, a partir desses discursos a favor do Mercosul, se possa organizar uma discussão sobre os fins e os meios mobilizados para construir o bloco e se tentar uma explicação para o evidente insucesso na consecução das metas explicitadas no artigo primeiro do Tratado de Assunção.
O autor não é claramente responsável pelo que veio depois, mas muitos dos impasses atuais se devem, provavelmente, às escolhas feitas naquela época, como, por exemplo, a opção pela continuidade da “internalização” ad hoc – ou seja, sujeitas ao arbítrio nacional – das resoluções e decisões adotadas conjuntamente. Diz-se que a estrutura constitucional brasileira não permitiria a existência de um tribunal dotado de poderes supranacionais, mas não se examinou, em detalhe, as condições de existência de uma corte arbitral permanente par aplicar o patrimônio jurídico já em vigor no bloco. Pode ser que uma instituição desse tipo viesse a perder legitimidade, como foi o caso no Grupo Andino, mas é também possível que as barreiras ainda numerosas tivessem começado a ser desmanteladas na fase ainda ascendente do Mercosul.
No conjunto, os textos são relevantes para permitir um retrato do Mercosul numa fase determinada de seu desenvolvimento, embora este conceito seja um tanto irônico ao se considerar o que veio depois. De fato, pode-se ler com alguma dose de ceticismo, um argumento do autor, segundo o qual, o Brasil é o país mais aberto do Mercosul” (p. 250). Não tenho certeza de que os demais sócios e outros países associados concordariam com a afirmação. Em todo caso, à falta de uma história do Mercosul, este livro constitui uma das fontes primárias – processadas politicamente, é verdade – para que um dia se possa escrever uma.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4-12 de janeiro de 2009.
Resenha de:
Renato L. R. Marques
Mercosul 1989-1999: depoimentos de um negociador
(Kiev: s.e., 2008, 280 p.; ISBN: 978-966-171-170-1)
Trata-se de uma edição de autor: uma coleção de artigos, de entrevistas ou de depoimentos feitos pelo diplomata gaúcho durante o período em que ele ocupou, sucessivamente, os cargos de chefe da Divisão Econômica Latino-Americana do MRE, de Secretário de Comércio Exterior do MDIC e de chefe do Departamento de Integração do MRE, entre 1989 e 1999. São duas dúzias de textos, cada um trazendo a data e o local de sua publicação ou “emissão” (no caso de depoimentos gravados), mas não, infelizmente, as circunstâncias e o contexto no qual foram produzidos. A produção amadora explica, assim, alguns dos problemas formais da obra, mas que em nada diminui o interesse para os aspectos substantivos dos temas tratados.
O autor ficou devendo uma introdução geral e talvez uma divisão temática, ou por seções, de molde a situar cada um dos textos no quadro mais geral da evolução do Mercosul em seus primeiros dez anos de existência. Outra questão organizacional é a da relativa imprecisão cronológica: a despeito de Marques situar sua compilação entre os anos de 1989 a 1999, os limites inicial e final dos textos correspondem, de fato, ao período que vai de 1991 a 2001, sendo que a última fase trata bem mais da Alca e das opções de política comercial do Brasil do que propriamente do Mercosul. Mas mesmo sem ater-se a uma estrutura temática mais racional, que poderia permitir um melhor aproveitamento dos muitos materiais aqui recolhidos, o autor prestou um bom serviço à comunidade de historiadores e de estudiosos dos fundamentos e do desenvolvimento do Mercosul, até aqui carente de estudos rigorosos nas áreas da ciência política e da história. Recomenda-se, talvez, para o futuro, uma segunda edição de características profissionais, de maneira a sanar as muitas falhas formais que apresenta este volume, feito por iniciativa do próprio autor e distribuído, provavelmente, a seus custos.
Mesmo à falta de uma inserção de cada um desses textos na história mais geral do Mercosul, os trabalhos selecionados pelo autor são importantes, na medida em que permitem uma aproximação ao que seria uma primeira “história oral” desse esquema de integração, ainda hoje carente – pelo menos no Brasil – de uma história oficial ou oficiosa que reconstitua, minuciosamente, suas diferentes etapas desde os anos de integração bilateral com a Argentina até o período atual, marcado por uma espécie de Entzauberung integracionista. O tom de vários textos é marcadamente otimista e “defensivo”, como corresponde, talvez, a questionamentos da imprensa ou da comunidade de negócios a respeito dos benefícios reais do Mercosul para a sociedade e para a economia brasileiras. Em vários outros, possivelmente voltados para platéias não especializadas, os objetivos didáticos aparecem mais explícitos, com extensas explicações sobre o funcionamento de determinados mecanismos do bloco, em face das regras multilaterais de comércio e da pequena selva burocrática na normatividade mercosuliana que o autor ajudou a construir.
Alguns dos textos tratam das relações do Mercosul com parceiros próximos – como o Chile, a Venezuela e outros países do Grupo Andino – ao passo que outros abordam problemas específicos: fundos regionais, aplicação das normas do Mercosul pelos juízes nacionais ou, ainda, o sempre presente problema institucional. Se o Brasil sempre se mostrou “ofensivo” na expansão comercial do Mercosul em direção de novos mercados, ele também se mostrou arredio em matéria institucional, opondo-se a sucessivas demandas – dos demais sócios, ou atendendo a sugestões de juristas – por maior grau de institucionalidade (que, para alguns, queria dizer supranacionalidade).
Parece ser uma regra das instituições burocráticas o fato de que problemas complexos não são jamais resolvidos: eles apenas entram no rol de itens da “agenda permanente” que passam a figurar em cada reunião do bloco: tais podem ser os casos do regime automotivo do Mercosul (mais exatamente bilateral, Brasil-Argentina), ou da eterna salvaguarda argentina imposta ao açúcar do Brasil. Aliás, falar em “regime automotivo do Mercosul” seria conceder-lhe um status superior ao merecido, como sistema de comércio bilateral administrado que de fato é, como nos velhos tempos do mercantilismo. Quanto ao açúcar, não há nada de especificamente mercosuliano em sua inadequação aos padrões do livre-comércio: trata-se, certamente, do primeiro produto na história mundial das commodities a gozar de regras especiais de proteção e subsídio em vários países da primeira revolução industrial – mais exatamente a partir do açúcar de beterraba surgido com a revolução francesa e o bloqueio continental operado pela Inglaterra – e que será, provavelmente, o último dos produtos a entrar num regime normal de comércio, talvez daqui a mais 150 anos. Bem, espera-se que, até lá, o Mercosul tenha chegado ao prometido mercado comum.
À falta de uma divisão temática ou “institucional” para este livro, o leitor é obrigado a percorrer linearmente os textos, para deles extrair alguns ensinamentos e esclarecimentos sobre aspectos pouco visíveis da história – até aqui quase secreta – do Mercosul. Essa trajetória linear corresponde, aliás, à organização mais simples do livro, sem que se possa, entretanto, discutir exaustivamente determinados problemas estruturais ou constitutivos do modelo sui generis que adotou o Mercosul ao longo de seus primeiros dez anos de existência (e ele acaba de completar a sua maioridade).
No conjunto, porém, os textos representam uma contribuição útil para a construção de uma futura história do Mercosul, com os cuidados devidos à manipulação de idéias ou opiniões que correspondem a um dos protagonistas oficiais do processo. Sim, cabe esclarecer que mesmo se o autor explicita, numa nota preliminar, que os seus argumentos representam unicamente a sua opinião pessoal, pode-se presumir que ele estivesse, cada vez, defendendo a posição oficial do governo brasileiro sobre cada um dos problemas abordados. Não é de se presumir que um representante do Itamaraty tenha idéias próprias sobre todas essas questões, ou que ele tenha “escolhido” certas “soluções” aos problemas da tarifa externa comum ou dos regimes setoriais em fase de adequação à abertura recíproca na ausência de consulta a todas as autoridades do governo. Depreende-se, aqui e ali, indiretamente, certa perplexidade ou insatisfação dos atores privados, o que revelaria carência de consulta ou coordenação com aqueles mesmos que deveriam operar a integração na prática diária: industriais, agricultores, empresários em geral, para nada falar dos estudiosos acadêmicos, provavelmente pouco consultados em todas as fases do processo.
Claramente, os textos precisam ser lidos e inseridos em seu contexto original, que é o da construção de um bloco de integração numa fase ainda ascendente, com pretensões a transformar-se em mercado comum (objetivo até agora frustrado; mas muitos duvidam que ele venha a ser concretizado um dia). Mesmo lidos com todo o cuidado de um historiador ou especialista acadêmico, não deixa de ser curioso, ao observador contemporâneo – em 2009, ou seja, uma década depois da data terminal que o autor colocou em se livro –, fazer uma leitura retrospectiva do que poderia ter sido o Mercosul e o que, efetivamente, ele veio a converter-se ao atingir a maioridade, praticamente congelado nas etapas examinadas neste livro de um dos protagonistas originais.
Um dos textos, por exemplo, datado de março de 1996, explica que “Não é o momento” de criar órgãos supranacionais, em especial um tribunal com poderes próprios (já que esse passo não seria constitucionalmente aceitável para o Brasil). Em outro, que faz um balanço da presidência brasileira e que comemora a passagem da “prova de fogo” que foi a instituição (sic) da união aduaneira, se lê que o Mercosul “consolidou-se como um agrupamento de crescente coesão interna e indiscutível capacidade de negociação externa” (p. 141). Sem comentários, nesta resenha...
Mais para o final do período, o argumento dominante na chancelaria era o de que o Brasil, sim, negociava a Alca, mas priorizava o Mercosul, por se tratar de um bloco com pretensões mais abrangentes e profundas, como o projeto de mercado comum. O temor, então (estávamos ainda 1997), era o de que a Alca provocasse “atraso, desvio ou interrupção no processo ora em curso de aperfeiçoamento da união aduaneira” (p. 169). Nunca houve, ao que parece, real interesse do Brasil pela Alca, que seria alegremente enterrada no cemitério de projetos irrealizáveis por ocasião da reunião de cúpula hemisférica de Mar del Plata, em novembro de 2005.
Naquela mesma conjuntura, o Brasil recusava a constituição de “fundos” ou a adoção de “medidas compensatórias”, sob a justificativa de que os recursos alocados competiriam com aplicações nacionais ou que esse tipo de mecanismo implicaria em instituições burocráticas onerosas (p. 217-218). A partir de 2003, como se sabe, o Brasil passou não apenas a aceitar, como a promover ativamente esse tipo de “fundo compensatório”, do qual é o maior contribuinte líquido – 70% por cento do volume global, recentemente aumentado em 100%, por decisão própria –, sem ser, obviamente, o maior beneficiário (a despeito das mesmas diferenças e desigualdades internas que justificavam a recusa no momento em que Renato Marques desenvolvia seus argumentos).
Incidentalmente – ou seja, sem que isto tenha a ver com o objeto do livro –, a comparação entre o período coberto pelo autor, todo ele voltado para a negociação e implementação dos objetivos primários do Mercosul – isto é, o acabamento da união aduaneira e o caminho na direção do mercado comum – e a fase subsequente, e atual, de abandono quase completo dessas metas “comercialistas” e a ênfase colocada em aspectos políticos ou sociais do bloco, muito nos diz sobre a inflexão que ele sofreu ao longo dos dez anos seguintes ao período aqui coberto. Teses que antes o governo do Brasil rejeitava por não pertinentes ao “espírito” ou à “essência” do Mercosul passaram a ser aceitas e até implementadas voluntariamente, como a já referida opção pela constituição de fundos compensatórios e mecanismos corretores, ou a “fuga para a frente” – tendente a construir novas instituições políticas e sociais –, em lugar de resolver questões ainda pendentes dos fundamentos econômicos incompletos e do baixo grau de abertura recíproca (paradoxalmente) do bloco.
Não se deve esperar, obviamente, um diagnóstico da situação do Mercosul, mesmo ao cabo do período coberto pelo livro, inclusive porque a natureza puramente “compilatória” da obra e a já referida lacuna de introdução ou de capítulo conclusivo não permitem tirar ensinamentos mais aprofundados. O que se tem aqui são materiais primários, minérios não processados, que devem aguardar outros insumos históricos ou lapidação por especialistas para que, a partir desses discursos a favor do Mercosul, se possa organizar uma discussão sobre os fins e os meios mobilizados para construir o bloco e se tentar uma explicação para o evidente insucesso na consecução das metas explicitadas no artigo primeiro do Tratado de Assunção.
O autor não é claramente responsável pelo que veio depois, mas muitos dos impasses atuais se devem, provavelmente, às escolhas feitas naquela época, como, por exemplo, a opção pela continuidade da “internalização” ad hoc – ou seja, sujeitas ao arbítrio nacional – das resoluções e decisões adotadas conjuntamente. Diz-se que a estrutura constitucional brasileira não permitiria a existência de um tribunal dotado de poderes supranacionais, mas não se examinou, em detalhe, as condições de existência de uma corte arbitral permanente par aplicar o patrimônio jurídico já em vigor no bloco. Pode ser que uma instituição desse tipo viesse a perder legitimidade, como foi o caso no Grupo Andino, mas é também possível que as barreiras ainda numerosas tivessem começado a ser desmanteladas na fase ainda ascendente do Mercosul.
No conjunto, os textos são relevantes para permitir um retrato do Mercosul numa fase determinada de seu desenvolvimento, embora este conceito seja um tanto irônico ao se considerar o que veio depois. De fato, pode-se ler com alguma dose de ceticismo, um argumento do autor, segundo o qual, o Brasil é o país mais aberto do Mercosul” (p. 250). Não tenho certeza de que os demais sócios e outros países associados concordariam com a afirmação. Em todo caso, à falta de uma história do Mercosul, este livro constitui uma das fontes primárias – processadas politicamente, é verdade – para que um dia se possa escrever uma.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4-12 de janeiro de 2009.
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