Book Reviews

30 dezembro, 2008

208) Um livro sobre a socializacao dos diplomatas

Mana
Print ISSN 0104-9313
Mana vol.14 no.2 Rio de Janeiro Oct. 2008
doi: 10.1590/S0104-93132008000200017

RESENHAS
Tatiana Oliveira Siciliano
Doutoranda PPGAS/MN/UFRJ

MOURA, Cristina Patriota de
O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira. Um estudo de carreira e socialização
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, 136pp.

Como o próprio título sugere, O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira. Um estudo de carreira e socialização trata, principalmente, do processo de interação social e aprendizado na carreira de diplomata. Os indivíduos não se tornam diplomatas quando aprovados no concorrido Concurso de Admissão do Instituto Rio Branco, mas aprendem a sê-lo através de um longo processo de socialização, transformação subjetiva e formação profissional, no qual a vivência com professores e colegas nos primeiros anos de Instituto Rio Branco – no Programa de Formação e Aperfeiçoamento, Primeira Fase – é capital.

Este livro é o resultado, quase na íntegra, da dissertação de mestrado, então intitulada Jovens colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco, defendida em 1999, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, por Cristina Patriota de Moura, hoje professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). O "mundo da diplomacia" entrelaça-se à trajetória da autora, ela própria neta, filha e sobrinha de diplomatas, e o seu interesse em "observar o familiar" com um olhar antropológico acompanha-a desde sua monografia de graduação em antropologia na UnB, cujo foco eram as identidades dos filhos de diplomatas.

Quando da defesa de Cristina de Moura, a carreira diplomática quase não era investigada academicamente. Há dez anos, época em que realizou seu trabalho de campo, o único estudo disponível, com o qual inclusive a autora dialogou bastante, era a dissertação de mestrado de Zairo Borges Cheibub, Diplomacia, diplomatas e política externa: aspectos do processo de institucionalização no Itamaraty, defendida em 1984, no IUPERJ. Atualmente, como a própria autora assinala na "Apresentação" do livro, o quadro vem mudando: cresceu tanto o interesse pela diplomacia como profissão como o número de pesquisas acadêmicas sobre o tema.

Outra contribuição do trabalho de Cristina Moura é o modo como ela se beneficia da leitura dos "estudos sobre carreira" de autores ligados à Escola de Chicago – como Everett Hughes, Erving Goffman e Howard Becker, as principais referências teóricas sobre o assunto – em sua abordagem sobre a construção da carreira dos jovens diplomatas pesquisados. A carreira é aqui entendida como um ciclo, um fluxo, um processo, no qual ator, instituição e acontecimentos encontram-se inevitavelmente imbricados. Assim, tornar-se um diplomata não é uma "conformação" aos preceitos do Instituto Rio Branco (IRBr), mas uma permanente "negociação da realidade", nos termos de Schutz. Naturalmente, a diplomacia apresenta peculiaridades, é um "campo" formal e hierárquico com fortes características institucionalizantes, cujo acesso à profissão e o seu controle se dão, via burocracia do Estado nacional, através do Ministério das Relações Exteriores.

Para exercer a profissão é preciso, primeiro, ser aprovado no concurso do IRBr; a partir de então, o "neófito" passará a constar do quadro funcional do Ministério das Relações Exteriores como terceiro secretário, o primeiro estágio das seis fases que estruturam a carreira diplomática. Como observa a autora, tal situação deve ser percebida não como um sistema predeterminado, mas como, na acepção de Gilberto Velho, um "campo de possibilidades" no qual os atores constantemente (re)elaboram seus "projetos" a partir de suas experiências e da interação com seus "pares" e "superiores".

A pesquisa de campo, ampla e minuciosa, merece destaque especialmente por se tratar de uma dissertação de mestrado, cujo tempo para a sua consecução é exíguo. A fim de entender e descrever não só o processo de incorporação do ethos profissional, mas também a "visão de mundo" compartilhada pelos jovens diplomatas, a autora recorreu a diversas fontes de informação, tanto primárias quanto secundárias. Fez um ano de observação participante dentro do Instituto Rio Branco, em Brasília, assistindo a várias aulas no PROFA-I junto com os diplomatas recém-aprovados na casa, conversou informalmente nos corredores com alunos e professores, além de assistir a cerimônias oficiais e formais como a do "Dia do Diplomata".

A sua observação não se restringiu, todavia, ao Itamaraty, pois freqüentou também um curso, no Rio de Janeiro, que preparava candidatos para o concurso, visando investigar este "momento traumático" de que tanto os diplomatas falavam. Além de conversas informais, usou entrevistas estruturadas e aplicou 39 questionários junto aos alunos do IRBr com o intuito de levantar as principais tendências e os perfis das turmas. Os arquivos e os currículos formais do IRBr, assim como os trabalhos acadêmicos disponíveis, constituíram as demais fontes de informações consultadas.

Por perceber a carreira do diplomata como uma trajetória, a autora mostra que ela se inicia antes da admissão do candidato ao IRBr. O "projeto" de tornar-se diplomata começa a se configurar, para alguns, ainda no Ensino Fundamental ou Médio; para outros, um pouco mais tarde, ou após o exercício de outra profissão. Em todos os casos, contudo, é um processo longo, no qual são investidos tempo, esforços físicos e mentais e recursos financeiros. Assim, existem algumas etapas bem delimitadas no aprendizado da carreira diplomática. A primeira é contar com uma boa formação prévia, ou direcionar seus esforços nesse sentido, visto que, para ingressar nos quadros do Ministério das Relações Exteriores, é preciso ter diploma de nível superior reconhecido pelo MEC, ser bem informado, ter bom domínio do inglês e português "impecável". A segunda é preparar-se para as provas do concurso, o que requer um estudo intenso e, por vezes, a freqüência a cursos preparatórios ou a aulas particulares.

Depois de "enfrentar" e vencer a tensão das cinco fases do concurso, o "calouro" inicia o Programa de Formação e Aperfeiçoamento, Primeira Fase (PROFA-I) com duração de dois anos. O primeiro ano está voltado para o desenvolvimento teórico e o segundo, mais centrado nas atividades profissionais, é o período de estágios na Secretaria das Relações Exteriores ou em postos fora do país. Percorrido todo esse caminho e aprovado no PROFA-I, vem a consagração na formatura, ocorrida no "Dia do Diplomata", após a qual o ex-aluno muda de status, transformando-se em "jovem colega" aos olhos de seus superiores.

O "Dia do Diplomata" consiste em um dos rituais mais representativos para a compreensão da "cosmologia" e do "sistema classificatório" do mundo diplomático, por ser composto de várias ações coletivas que visam institucionalizar a diplomacia brasileira e definir o seu papel junto à nação. Cristina Moura argumenta, apoiando-se nos conceitos de Tambiah, que as práticas rituais do "Dia do Diplomata", bem como a crença na sua eficácia, são fundamentais na incorporação do ethos e no compartilhamento da "visão de mundo" dos diplomatas.

Trata-se de uma cerimônia oficial e anual, cujo ritual é marcado pelos seguintes momentos: chegada do Presidente da República, execução do Hino Nacional, entrega de medalhas e insígnias pelo Presidente, cerimônia de formatura e encerramento com um almoço com o Presidente, no qual estão presentes os formandos. É uma "tradição inventada", nos termos de Hobsbawn, em 1970, ano da inauguração do Palácio do Itamaraty na capital federal e transferência da sede do Ministério das Relações Exteriores do Rio de Janeiro para Brasília. A escolha do dia 20 de abril é uma homenagem ao nascimento do Barão do Rio Branco, "patrono da diplomacia".

Para os principiantes, o "Dia do Diplomata" é um marco. É quando institucionalmente são considerados diplomatas, não mais alunos do Instituto Rio Branco. Assinala o fim do treinamento e a entrada no dia-a-dia da profissão. Além de ser um momento especial, de distinção, ele oferece a oportunidade de, ao final das comemorações, os jovens diplomatas compartilharem um almoço com o chefe da nação e conversarem informalmente com os "chefes da casa".

A fase do treinamento, experimentada no PROFA-I, é fundamental na "metamorfose" de neófito à diplomata de carreira. É nesse período que o ethos diplomático é incorporado, uma vez que no seu decorrer o aluno "deixa de ser quem era" e passa a fazer parte da instituição. E, para isso, é preciso aprender os códigos que não são ensinados nos livros, como o conhecimento das regras de etiqueta e dos protocolos, o uso formal da linguagem, o domínio da hexis corporal e a adequação do vestuário. Ao interagirem com os colegas de turma, professores e diplomatas hierarquicamente superiores, os alunos absorvem muito mais do que conceitos teóricos, construindo um sentimento de pertencimento institucional, uma adesão ao status diplomático que lhes permite ver como "naturais" os processos formais da "casa".

Cristina Moura mostra que optar pela carreira diplomática transcende à escolha de uma profissão, representando uma aderência a um estilo de vida, ao "espírito" de uma corporação, o que inclui novas responsabilidades, privilégios e deveres extensivos à família nuclear, existente ou a ser formada. Daí a importância do fato, para ser bem-sucedido, de que se escolha um cônjuge à altura dos requisitos profissionais: sociável, sofisticado e com boa escolaridade, além de flexível, uma vez que deverá aceitar seguir o(a) companheiro(a) nas constantes transferências de posto inerentes ao ofício, exigências estas que, por vezes, propiciam o casamento "endogâmico" entre diplomatas ou entre diplomata homem e filha de diplomatas. Afinal, nas palavras da autora, "a instituição engloba a família nuclear, definindo seus membros em um sistema classificatório tríplice: diplomata, filho de diplomata e cônjuge de diplomata" (:102).

A leitura do trabalho de Cristina Moura, agora publicado e acessível a um público maior, interessa não somente aos que estudam setores da burocracia do Estado brasileiro, mas a todos que desejam compreender a complexidade de certas dimensões culturais do país nas quais concepções formais e comportamentos "aristocráticos" convivem, lado a lado, com o "moderno" conceito de "meritocracia". Ademais, o livro certamente agradará a quem se sente atraído por "estudos sobre carreira". Trata-se de uma etnografia bem escrita, que sublinha a heterogeneidade das experiências no processo de construção de uma carreira. Um livro que faz lembrar, por sua vivacidade, o processo de "socialização" dos estudantes de medicina descritos por Howard Becker em Boys in white. Student culture in medical school.

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