Book Reviews

04 fevereiro, 2008

173) Giberto Freyre: duas biografias intelectuais

REGISTRO
Gilberto Freyre por seus biógrafos
Uma análise comparativa entre as duas mais recentes biografias do Mestre de Apipucos.
Anco Márcio Tenório Vieira
Revista Continente Multicultural
Edição Nº85 - Janeiro de 2008

Os lábios eram grossos, os ombros largos, os dentes irregulares, e a pele morena; vestia-se de maneira estudada — ternos de tecido inglês, mas também de casimira ou linho branco S-120, meias de losangos coloridos, chapéu de feltro, suéter "bariolado", gravata amarelo canário —; perfumava-se com água-de-colônia e trazia sempre no bolso um lenço embebido em perfume francês e uma folha de papel de seda com pó-de-arroz. Na hora de se entregar aos braços de Morfeu, vestia-se com um pijama roxo. Apesar de todos esses ornamentos refletidamente escolhidos, confessava aos ami-gos: "Meu Deus, como sou feio!". Feiúra que o levava a se definir como "um canhão". No entanto, como todos esses recursos ainda não eram suficientes para encobrir sua pouca beleza, atenuava o tom moreno da sua pele com o pó-de-arroz que carregava sempre no bolso.
As duas biografias que, nos últimos dois anos, foram publicadas sobre o Mestre de Apipucos — Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos (2005), da historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, e Gilberto Freyre: uma biografia cultural (2007), do antropólogo Enrique Rodrigues Larreta e do crítico de literatura Guillermo Giucci — tratam, cada uma ao seu modo, de como Gilberto Freyre, num longo processo de reflexão intelectual, foi, ao longo dos Anos 20, revendo sua formação cientificista — que classificava os homens em "raças" superiores e inferiores e acatava o "clima" como um fator determinante para o florescimento ou não de uma civilização — e terminou por transformar "a miscigenação de hipoteca em lucro", para citar a feliz expressão do historiador Evaldo Cabral de Melo.
No entanto, mesmo sendo duas eruditas biografias, a precedência de publicação da obra de Pallares-Burke terminou por expor, quando não potencializar, as insuficiências da tão prometida bio-grafia de Larreta e Giucci (iniciada na segunda metade dos anos 90). Se ao lermos a biografia de Pallares-Burke descobrimos um Freyre completamente desconhecido, ao lermos Larreta e Giucci a impressão que temos é que tudo que lá está dito nos parece familiar. E essa familiaridade se dá, entre outros motivos, pelas metodologias distintas que foram empregadas pelos autores. Enquanto Pallares-Burke constrói sua biografia a partir do conceito de "Campo intelectual", de Pierre Bourdieu, que afirma que "[...] para se entender um intelectual no seu próprio tempo e discutir o modo como ele pode ter dado continuidade e ao mesmo tempo transcendido o mundo cultural que herdou, é imperativo um esforço de descrever o campo intelectual ao qual ele pertencia", Larreta e Giucci tomam "como critérios centrais da presente pesquisa" "a reconstrução dos contextos de época, a análise dos autores significativos e o traçado de seu próprio horizonte de idéias e sensibilidade, apoiados no exame preciso de documentação histórica".
O fato é que Pallares-Burke persegue, através de um trabalho meticuloso e exaustivo (e com uma objetividade que só os biógrafos britânicos possuem), o campo intelectual de Freyre, desvelando seus contatos literários e científicos e, principalmente, as suas leituras, em particular as que foram realizadas entre 1918 (quando viaja para estudar na Universidade de Baylor, nos Estados Uni-dos) e 1933 (ano da publicação de Casa-grande & senzala). Mais: sua biografia nos revela como Freyre transformou "a miscigenação de hipoteca em lucro", construiu sua "noção de 'antagonismos em equilíbrio'" (idéia nascida durante a sua estada na Inglaterra), redefiniu o conceito de "regionalismo" (a unidade dentro da diversidade) e, principalmente, como sedimentou seus pressupostos críticos para pensar as bases de uma sociedade moderna no Brasil. Idéias que vão, ao longo das suas obras, se desdobrando em tantas outras, como a de metaraça, lusotropicologia, tempo tríbio, Região e Tradição, etc.
Já a biografia escrita por Larreta e Giucci, nada obstante comentar algumas influências intelectuais de Freyre (muitas já exploradas exaustivamente e problematizadas em profundidade por Palla-res-Burke), se prende muito mais à própria trajetória de vida do biografado do que em lançar novas interpretações das suas idéias. Pior: se valem amiúde (muitas vezes sem o rigor crítico necessário) das informações fornecidas pelo próprio Freyre, como as contidas no seu diário de adolescência e mocidade — Tempo morto e outros tempo (1975) —, numa autobiografia, ainda inédita, que vinha escrevendo em seus últimos anos de vida, e na biografia — Gilberto Freyre — que Diogo de Melo Menezes publicou em 1944 (texto em que a mão de Freyre esteve presente). Sendo um construtor meticuloso da sua biografia (característica dos homens da sua geração, basta lembrar Mário de An-drade, autor de uma copiosa correspondência com os amigos, mas que sempre ocultou deles sua homossexualidade), as informações biográficas fornecidas por Freyre não podem ser simplesmente acatadas acriticamente. Recordemos que na velhice, quando republicou os artigos de juventude em dois volumes — Tempo de aprendiz (1979) —, ele acresce frases e parágrafos inteiros. Detalhe: o leitor não é informado que os textos foram revistos. Daí a sensação, como já dissemos, de que o que vamos encontrar em Gilberto Freyre: uma biografia cultural vai nos parecer familiar. Pois quem é familiarizado com os livros citados acima pouco encontra de novo na obra de Larreta e Giucci.
Outro ponto a favor de Pallares-Burke é como ela enfrenta, com rara coragem intelectual, a fortuna crítica de Freyre. Já Larreta e Giucci discutem timidamente as "verdades" estabelecidas pelos seus críticos (particularmente a chamada Escola Paulista). Afinal, não há como pensar Freyre sem repensar criticamente o que se escreveu sobre ele. Como todo autor polêmico, complexo e que se tornou um clássico na sua área de conhecimento, Freyre termina hoje por ser conhecido do grande público antes pelo o que os seus críticos escreveram sobre ele do que pela leitura da sua obra. Um bom exemplo é o mítico conceito de "democracia racial". Imputado a Freyre pelos seus desafetos, particularmente a partir de 1964, mas que nunca foi enunciado na sua obra.
Creio ainda que Larreta e Giucci concluem sua obra em dívida com o leitor. Não se entende como eles dedicam dezenas de páginas a descrever a recepção crítica de Casa-grande & senzala e calam ante a recepção crítica de Sobrados e mucambos (1936). Obra, em muitos aspectos, superior a Casa-grande & senzala. Além do que, o livro príncipe de Freyre tem sua fortuna crítica conhecida desde 1985, quando Edson Nery da Fonseca a reuniu e comentou em livro, hoje raro, publicado pela CEPE: Casa-grande & senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944. A impressão que fica é que faltou a Larreta e Giucci o que sobrou em Pallares-Burke: vontade de pesquisar, organizar e refletir sobre tão rica matéria intelectual. Se a fortuna crítica de Casa-grande & senzala fosse ajuntada com a de Sobrados e mucambos teríamos, em primeira mão, um painel das matrizes intelectuais que irão delinear as principais correntes críticas ao pensamento de Freyre. Fica a dívida e uma sugestão para os futuros pesquisadores.
Poderíamos ainda apontar, em ambas as biografias, algumas insuficiências, a exemplo de uma maior verticalização sobre as idéias que fundamentaram o regionalismo. Regionalismo que gerou um dos momentos mais fecundos da literatura em língua portuguesa — a dos anos 30 — e que ao contrário do que foi, em um primeiro momento, o Modernismo paulista, não se restringiu ao ape-nas estético. Como já escrevi nesta mesma revista (dez. 2006), há no projeto regionalista de 1926 "algo mais ambicioso" do que um projeto estético-literário: nele se busca um projeto civilizatório. Daí a diversidade e a interdisciplinaridade dos temas tratados no 1° Congresso Regionalista do Nor-deste: estética, urbanismo, sociologia, antropologia, cultura popular, história e, principalmente, ecologia (tema de um dos seus mais contundentes libelos contra a monocultura da cana-de-açúcar: Nordeste, de 1937). Toda a obra de Freyre persegue esse projeto civilizatório e, principalmente, a defesa de uma Modernidade que seja filtrada pelos conceitos de Região e Tradição. Ou seja, a Modernidade, para Freyre, seria antes uma ferramenta crítica para pensarmos os destinos do Brasil do que algo acatado como um valor em si. Tradição, Região e Modernidade são conceitos que, em Freyre, não convivem separadamente, um precisa do outro para cumprir seu destino. Resumindo: em Freyre, o local é caminho de partida para o universal e não um ponto de chegada. Daí sua admiração por James Joyce e, como lembram Larreta e Giucci, "em várias ocasiões [Freyre] escreverá que em sua árvore genealógica espiritual Shakespeare está mais próximo que Camões".
Apesar da monumentalidade das biografias comentadas, o brilho que emana da obra de Pallares-Burke é mais forte do que o que vem do livro de Larreta e Giucci. A obra de Pallares-Burke se firma não somente como a mais importante já escrita sobre Gilberto Freyre, mas como definidora para se entender, no campo das idéias, a formação do Brasil moderno que nasce nas décadas de 1920 e 1930. Alguns próceres da geração de Freyre — a exemplo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Portinari... — estão carecendo de biogra-fias intelectuais tão eruditas e exaustivas como as que foram escritas sobre o Mestre de Apipucos. A sorte está lançada.
A propósito, o perfil físico no parágrafo inicial não é o de Freyre, e sim o de Mário de Andrade. Em 1921, o então cientificista Freyre avista um bando de marinheiros brasileiros ("mulatos e cafu-zos") andando pela neve do Brooklyn, em Nova York. Sua impressão é "de caricaturas de homens" — "A miscigenação resultava naquilo", conclui melancolicamente; conclusão que poderia ser de qualquer um dos seus contemporâneos. Ler as citadas biografias aqui resenhadas é percorrer uma trajetória intelectual — a de Freyre — e de como ele abandonou o eugenismo e passou a exaltar a miscigenação. No entanto, por subtração, passamos também a entender como certas idéias subsistem aos novos conceitos. O Mário que escondia sua morenidade com pó-de-arroz (a feiúra ele ocultava com as roupas meticulosamente escolhidas), revela-nos que nem sempre idéias novas significam a morte das antigas. Elas subsistem no inconsciente, mesmo dos que, em sua plena razão (como é o caso de Mário), já não acreditam mais nelas. Este talvez seja o motivo do porque das idéias de Freyre ainda continuarem tão atuais.

Anco Márcio Tenório Vieira é doutor em Teoria Literária e professor universitário.