157) Tratado de Ateologia, por Michel Onfray
Tratado de Ateologia
Michel Onfray
Autora desta resenha: Luciana Nery
O título em inglês, "Atheist Manifesto: The Case Against Christianity, Judaism, and Islam" é bem mais esclarecedor do que o título original, "Traité d'athéologie", e sua tradução direta para o português. Eis o significado de ateologia, proposto pelo autor: a descontrução dos três monoteísmos, o caminho de volta da teologia em direção às Luzes.
O autor observa que faltam palavras no idioma para designar o aspecto positivo e afirmador daqueles que vivem sem as religiões. Predominam, portanto, os prefixos de negação: a-teu, ir-religioso, a-gnóstico, in-crédulo, des-crença, im-piedade. Além disso, não existem estudos sistemáticos nas universidades sobre o pensamento ateu - os ataques às ligações entre Estado e Igreja, as postulações de filósofos iluministas sobre o assunto, o desenvolvimento da leitura crítica de textos sagrados.
Ele traça as origens do ateísmo a um panfleto publicado em 1636 pelo jesuíta português Cristóvão Ferreira, no qual o autor afirma que o mundo não foi criado por ninguém, que almas não existem, que o papa é imoral e que todo o cristianismo é uma invenção humana. Ainda assim, não se declara plenamente ateu, pois nunca questiona a existência de Deus. O ateísmo propriamente dito seria exposto pela primeira vez por Jean Meslier, abade francês, em obra póstuma de 1729. Em livro volumoso, o abade ataca a Igreja, Jesus, o Ancien Régime e, finalmente, Deus.
Ao contrário de Dawkins, Sam Harris e de outros ateus proeminentes, Onfray crê que a religião é permissível na condição de assunto privado, como "perversão", desde que não afete a vida alheia. As crenças religiosas seriam inerentes à mortalidade, pois o ser humano seria incapaz de observar a morte de um ente querido e, diante do corpo inerte, crer que aquele é o fim, que não há mais nada além. Essa busca de conforto contra a angústia e o medo sustentariam a religião de tal forma que ela só deixaria de existir com o último homem sobre a terra.
Por não ser cientista anglo-saxão, mas filósofo francês, Onfray elabora a prosa e investe na literatura. Um dos primeiros parágrafos do prefácio é ilustrativo: "Penso nas terras de Israel e da Judéia-Samaria, em Jerusalém e Belém, em Nazaré e no lago Tiberíade, lugares em que o sol queima os rostos, resseca os corpos, assedenta as almas e gera desejos de oásis, vontades de paraísos em que a água corre, fresca, limpa, abundante, em que o ar é doce, perfumado, acariciante, em que abundam o alimento e as bebidas. Os além-mundos de repente me parecem contramundos inventados por homens cansados, exaustos, ressecados por seus trajetos reiterado nas dunas ou nas trilhas pedregosas em brasa. O monoteísmo sai da areia."
Sob a aparente diversidade das religiões está o deísmo e, para sua manutenção, as crenças que subjazem os três monoteísmos: de que há recompensa adiante, de que questionamentos sejam presunção e arrogância passíveis de castigo, de que a mulher é um ser inferior e de que a ciência é inimiga. Usando de vasta erudição sobre o pensamento ocidental e sobre os três Livros, Onfray traça paralelos entre as religiões e realça suas contradições internas. Cita Dostoiévski, "se Deus não existe, então tudo é permitido" e afirma que, pelo contrário, foram as religiões que tudo permitiram. No Cristianismo, por exemplo, há a ordem clara e singela de Deus a Moisés, o "Não matarás", que, no entanto, foi ignorada nas Cruzadas, na Inquisição, nos imperialismos europeus e em várias ditaduras cristãs. Não fugindo das controvérsias, Onfray cita evidências do catolicismo de Hitler, além da já conhecida leniência da Igreja Católica com o Holocausto.
O ataque às religiões é feito com paixão arrebatadora, abundante de adjetivos pouco generosos e nenhuma auto-censura. Por vezes, na busca por teorias unificadoras temáticas, Onfray incorre em generalizações que, certamente, podem ser contestadas ou relativizadas. Com isso, arrisca-se a ver alguns de seus argumentos, tão intrigantes, atacados por imperfeições factuais.
Em contraste com esse furor anti-religião, está a visão benevolente do autor aos crentes que, segundo ele, estariam apenas procurando formas oblíquas de encarar a realidade e a inexorabilidade da morte. Mesmo aqueles que já não comungam dos Livros procurariam "alguma coisa", algo que estaria além, pois não pode ser "só isso". Deve haver algo que legitime e justifique a existência. Essa "vitimização" dos crentes é condescendente e quiçá ofensiva, pois nega suas faculdades de pensar livremente e confunde suas crenças com aquilo que não necessariamente defendem, isto é, o derramamento de sangue e o obscurantismo em nome das religiões. Onfray reitera seus ataques às classes clericais e aos que usam a religião como forma de disuassão e de poder.
Michel Onfray
Autora desta resenha: Luciana Nery
O título em inglês, "Atheist Manifesto: The Case Against Christianity, Judaism, and Islam" é bem mais esclarecedor do que o título original, "Traité d'athéologie", e sua tradução direta para o português. Eis o significado de ateologia, proposto pelo autor: a descontrução dos três monoteísmos, o caminho de volta da teologia em direção às Luzes.
O autor observa que faltam palavras no idioma para designar o aspecto positivo e afirmador daqueles que vivem sem as religiões. Predominam, portanto, os prefixos de negação: a-teu, ir-religioso, a-gnóstico, in-crédulo, des-crença, im-piedade. Além disso, não existem estudos sistemáticos nas universidades sobre o pensamento ateu - os ataques às ligações entre Estado e Igreja, as postulações de filósofos iluministas sobre o assunto, o desenvolvimento da leitura crítica de textos sagrados.
Ele traça as origens do ateísmo a um panfleto publicado em 1636 pelo jesuíta português Cristóvão Ferreira, no qual o autor afirma que o mundo não foi criado por ninguém, que almas não existem, que o papa é imoral e que todo o cristianismo é uma invenção humana. Ainda assim, não se declara plenamente ateu, pois nunca questiona a existência de Deus. O ateísmo propriamente dito seria exposto pela primeira vez por Jean Meslier, abade francês, em obra póstuma de 1729. Em livro volumoso, o abade ataca a Igreja, Jesus, o Ancien Régime e, finalmente, Deus.
Ao contrário de Dawkins, Sam Harris e de outros ateus proeminentes, Onfray crê que a religião é permissível na condição de assunto privado, como "perversão", desde que não afete a vida alheia. As crenças religiosas seriam inerentes à mortalidade, pois o ser humano seria incapaz de observar a morte de um ente querido e, diante do corpo inerte, crer que aquele é o fim, que não há mais nada além. Essa busca de conforto contra a angústia e o medo sustentariam a religião de tal forma que ela só deixaria de existir com o último homem sobre a terra.
Por não ser cientista anglo-saxão, mas filósofo francês, Onfray elabora a prosa e investe na literatura. Um dos primeiros parágrafos do prefácio é ilustrativo: "Penso nas terras de Israel e da Judéia-Samaria, em Jerusalém e Belém, em Nazaré e no lago Tiberíade, lugares em que o sol queima os rostos, resseca os corpos, assedenta as almas e gera desejos de oásis, vontades de paraísos em que a água corre, fresca, limpa, abundante, em que o ar é doce, perfumado, acariciante, em que abundam o alimento e as bebidas. Os além-mundos de repente me parecem contramundos inventados por homens cansados, exaustos, ressecados por seus trajetos reiterado nas dunas ou nas trilhas pedregosas em brasa. O monoteísmo sai da areia."
Sob a aparente diversidade das religiões está o deísmo e, para sua manutenção, as crenças que subjazem os três monoteísmos: de que há recompensa adiante, de que questionamentos sejam presunção e arrogância passíveis de castigo, de que a mulher é um ser inferior e de que a ciência é inimiga. Usando de vasta erudição sobre o pensamento ocidental e sobre os três Livros, Onfray traça paralelos entre as religiões e realça suas contradições internas. Cita Dostoiévski, "se Deus não existe, então tudo é permitido" e afirma que, pelo contrário, foram as religiões que tudo permitiram. No Cristianismo, por exemplo, há a ordem clara e singela de Deus a Moisés, o "Não matarás", que, no entanto, foi ignorada nas Cruzadas, na Inquisição, nos imperialismos europeus e em várias ditaduras cristãs. Não fugindo das controvérsias, Onfray cita evidências do catolicismo de Hitler, além da já conhecida leniência da Igreja Católica com o Holocausto.
O ataque às religiões é feito com paixão arrebatadora, abundante de adjetivos pouco generosos e nenhuma auto-censura. Por vezes, na busca por teorias unificadoras temáticas, Onfray incorre em generalizações que, certamente, podem ser contestadas ou relativizadas. Com isso, arrisca-se a ver alguns de seus argumentos, tão intrigantes, atacados por imperfeições factuais.
Em contraste com esse furor anti-religião, está a visão benevolente do autor aos crentes que, segundo ele, estariam apenas procurando formas oblíquas de encarar a realidade e a inexorabilidade da morte. Mesmo aqueles que já não comungam dos Livros procurariam "alguma coisa", algo que estaria além, pois não pode ser "só isso". Deve haver algo que legitime e justifique a existência. Essa "vitimização" dos crentes é condescendente e quiçá ofensiva, pois nega suas faculdades de pensar livremente e confunde suas crenças com aquilo que não necessariamente defendem, isto é, o derramamento de sangue e o obscurantismo em nome das religiões. Onfray reitera seus ataques às classes clericais e aos que usam a religião como forma de disuassão e de poder.
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