149) Essential Galbraith
O "liberal" do título da matéria deve ser lido no sentido americano (isto é, intervencionista), não no sentido europeu, que costuma indentificar os liberais clássicos, isto é, comprometidos com a liberdade dos mercados. John Kenneth Galbraith era um keynesiano cepaliano, se ouso dizer. PRA
O espírito e a voz de um liberal histórico
Por Cyro Andrade
Valor Econômico, 25/10/2007
Galbraith Essencial
Andrea D. Williams
Org. Futura, 335 págs., R$ 39,90
Galbraith: idéias e propostas sempre atuais, a favor de mais atenção para os pobres (países, inclusive) e pela paz
Um espírito ronda a Casa Branca. Agora que Hillary Clinton parece ter chances de ser presidente, pode-se supor que anda por ali o espectro das idéias de John Kenneth Galbraith, conselheiro, em diferentes graus de aproximação, de todos os presidentes democratas, desde Franklin Roosevelt até Bill Clinton. Hillary não terá Galbraith lhe falando de corpo presente (ele morreu em abril de 2006, aos 97 anos), mas será difícil não lembrar de suas críticas às iniqüidades sociais, de sua defesa de um programa de renda mínima, de sua proposta de tributação progressiva da renda, de seu combate ao que considerava mitos da economia de mercado. Até de questões ambientais ele se ocupou. E será impossível, havendo o Iraque, não lembrar da luta de Galbraith, como conselheiro de John Kennedy e, depois, de Lyndon Johnson, contra a Guerra do Vietnã.
Professor, conferencista, escritor, diplomata (foi embaixador na Índia, no governo Kennedy), Galbraith deixou uma biografia de rara substância, que se poderia resumir como um encadeamento de atitudes moldadas no liberalismo que o americano considera "um dos pressupostos da vida", como disse Arthur Meier Schlesinger, Jr.. (1917-2007) e que o faz ser "por natureza, um gradualista", para quem "poucos problemas" não poderão ser resolvidos "pela razão e pelo debate". Galbraith foi esse americano típico (naturalizado, era canadense de nascimento) e fez por merecer, como Schlesinger, a legenda de fundador do pensamento liberal em sua vertente pós-Segunda Guerra. Enquanto Schlesinger dizia que o New Deal era a expressão natural de tendências profundamente estabelecidas na história americana, Galbraith tentou mostrar que a essência keynesiana do New Deal seria a chave da prosperidade no pós-guerra.
Em "Galbraith Essencial" estão o pensador-economista de peculiar rigor crítico, que dirigia olhares severos à direita e à esquerda, e o escritor de prosa cativante (que traduções nem sempre conseguem apreender). Galbraith foi um precursor no diálogo intelectual da economia com outras disciplinas e na proposta de falar de questões complexas para o público leigo, capacidade que o projetou como um excepcional vendedor de livros e que certamente o qualificou ainda mais para integrar-se à intimidade dos círculos políticos democratas.
O primeiro texto de "Galbraith Essencial" é de "American Capitalism" (1952), livro em que ele explica seu conceito de "poder compensatório" e investe contra o que considerava mitos da economia dita de livre mercado. É do mesmo ano "A Theory of Price Control", no qual Galbraith fala de sua passagem pelo Office of Price Administration, no governo de Roosevelt. Mais tarde, diria que esse era seu melhor livro, embora fosse muito pouco lido (talvez por isso não tenha entrado na coletânea agora publicada no Brasil). Tomou então uma decisão: "Nunca mais me colocaria à mercê dos economistas técnicos que tinham o enorme poder de ignorar o que eu havia escrito. Passei a envolver uma comunidade maior." Acertou em cheio. E ganhou críticos de todas as cores, ortodoxos e heterodoxos.
Seguem-se na coletânea - organizada com a aprovação de Galbraith - textos de "A Sociedade Afluente" (1958), um libelo contra a cultura consumista, típica de uma sociedade rica em bens, mas pobre em serviços sociais, e de "O Novo Estado Industrial" (1967), em que ele descreve a transição do poder da aristocracia rural para os grandes empresários industriais e destes para os gestores das modernas corporações. Vêm depois partes de "Economia, Paz e Humor", "Crônicas de um Eterno Liberal", "Era da Incerteza" (que deu nome também a uma série de 13 documentários para a televisão, um amplo percurso por 200 anos da teoria e prática da economia), "Breve História da Euforia Financeira", "1929: O Colapso da Bolsa". O livro termina com o texto de uma conferência, "O Assunto Inacabado do Século" (1999). Nele, Galbraith fala de três assuntos pendentes de solução ainda hoje: a desigualdade na sociedade americana, o fosso entre países ricos e pobres e a ausência de canais de expressão concreta de solidariedade, os arsenais atômicos.
Atribui-se a Galbraith a cunhagem da expressão "conventional wisdom". Pode-se optar por "sabedoria" como equivalente a "wisdom", quase literalmente, e aí a expressão ganha o tom irônico, sugerido por Galbraith quando a empregou pela primeira vez em "The Affluent Society". Essa "sabedoria", disse, é feita de idéias que merecem atenção apenas por sua "aceitabilidade". E como se derruba essa fachada de falsa sapiência, de invalidade prenunciada? "O inimigo da sabedoria convencional não são as idéias, mas a marcha dos acontecimentos", afirma Galbraith no mesmo livro. Os acontecimentos nos Estados Unidos apontam todos, hoje - é o que sugerem as pesquisas pró-Hillary e o repúdio da maioria ao governo Bush - , para a necessidade de uma outra racionalização, externa à "sabedoria" estabelecida, que reconstrua a solidariedade social, esgarçada pela ampliação das diferenças. Hillary foi ao ponto, em discurso de outro dia: "Eu vejo vocês, eu ouço vocês", disse ela, falando da intenção de "reconstruir a classe média" - o que significaria também, por coerência política, rever práticas de governo que ignoram as necessidades dos mais pobres. "Vocês não são invisíveis para mim", afiançou. Galbraith aplaudiria.
Galbraith dedicou-se, então, ao desmonte de supostas verdades, a começar por aqueles princípios econômicos neoclássicos que se enraizaram na academia, na política e nas práticas de governo, interpretações variadas do que, na visão dos habitantes de partes importantes desses universos, deveria ser a opinião dita pública. Quando afirmava que essa "sabedoria" não resistia à evolução dos fatos, Galbraith queria dizer que esses pedaços de suposto saber incontestável já nasciam para ser coisa do passado, como conseqüência de sua própria insubstancialidade, ela mesma instigadora de novas formas de pensar que surgem sob o estímulo, também, daquela transitoriedade. Não seria tarefa para pouco empenho, porém, essa de tentar mover o leme para outra direção, já explicava Keynes, que terminou assim o prefácio à sua "Teoria Geral": "A dificuldade não está nas novas idéias [em desenvolvê-las], mas em como fugir das velhas, que se ramificam em cada canto de nossas mentes." Galbraith entrou nessa briga e nunca mais saiu.
Quando morreu, no ano passado, professor emérito de Harvard, Galbraith mereceu páginas e páginas de obituários, que também serviram à crítica de sua obra. "The Economist", sendo sua linha editorial o que é, até que foi generosa, mas não cedeu por inteiro. Para a revista, Galbraith foi "menos um economista do que uma mistura de sociólogo, cientista político e jornalista" ("Fortune" publicou muitos artigos de Galbraith, o que contribuiu bastante para a popularização de suas idéias, o que também significava trazer Keynes para a atualidade). É mais ou menos isso que muitos economistas gostariam de ser hoje.
O espírito e a voz de um liberal histórico
Por Cyro Andrade
Valor Econômico, 25/10/2007
Galbraith Essencial
Andrea D. Williams
Org. Futura, 335 págs., R$ 39,90
Galbraith: idéias e propostas sempre atuais, a favor de mais atenção para os pobres (países, inclusive) e pela paz
Um espírito ronda a Casa Branca. Agora que Hillary Clinton parece ter chances de ser presidente, pode-se supor que anda por ali o espectro das idéias de John Kenneth Galbraith, conselheiro, em diferentes graus de aproximação, de todos os presidentes democratas, desde Franklin Roosevelt até Bill Clinton. Hillary não terá Galbraith lhe falando de corpo presente (ele morreu em abril de 2006, aos 97 anos), mas será difícil não lembrar de suas críticas às iniqüidades sociais, de sua defesa de um programa de renda mínima, de sua proposta de tributação progressiva da renda, de seu combate ao que considerava mitos da economia de mercado. Até de questões ambientais ele se ocupou. E será impossível, havendo o Iraque, não lembrar da luta de Galbraith, como conselheiro de John Kennedy e, depois, de Lyndon Johnson, contra a Guerra do Vietnã.
Professor, conferencista, escritor, diplomata (foi embaixador na Índia, no governo Kennedy), Galbraith deixou uma biografia de rara substância, que se poderia resumir como um encadeamento de atitudes moldadas no liberalismo que o americano considera "um dos pressupostos da vida", como disse Arthur Meier Schlesinger, Jr.. (1917-2007) e que o faz ser "por natureza, um gradualista", para quem "poucos problemas" não poderão ser resolvidos "pela razão e pelo debate". Galbraith foi esse americano típico (naturalizado, era canadense de nascimento) e fez por merecer, como Schlesinger, a legenda de fundador do pensamento liberal em sua vertente pós-Segunda Guerra. Enquanto Schlesinger dizia que o New Deal era a expressão natural de tendências profundamente estabelecidas na história americana, Galbraith tentou mostrar que a essência keynesiana do New Deal seria a chave da prosperidade no pós-guerra.
Em "Galbraith Essencial" estão o pensador-economista de peculiar rigor crítico, que dirigia olhares severos à direita e à esquerda, e o escritor de prosa cativante (que traduções nem sempre conseguem apreender). Galbraith foi um precursor no diálogo intelectual da economia com outras disciplinas e na proposta de falar de questões complexas para o público leigo, capacidade que o projetou como um excepcional vendedor de livros e que certamente o qualificou ainda mais para integrar-se à intimidade dos círculos políticos democratas.
O primeiro texto de "Galbraith Essencial" é de "American Capitalism" (1952), livro em que ele explica seu conceito de "poder compensatório" e investe contra o que considerava mitos da economia dita de livre mercado. É do mesmo ano "A Theory of Price Control", no qual Galbraith fala de sua passagem pelo Office of Price Administration, no governo de Roosevelt. Mais tarde, diria que esse era seu melhor livro, embora fosse muito pouco lido (talvez por isso não tenha entrado na coletânea agora publicada no Brasil). Tomou então uma decisão: "Nunca mais me colocaria à mercê dos economistas técnicos que tinham o enorme poder de ignorar o que eu havia escrito. Passei a envolver uma comunidade maior." Acertou em cheio. E ganhou críticos de todas as cores, ortodoxos e heterodoxos.
Seguem-se na coletânea - organizada com a aprovação de Galbraith - textos de "A Sociedade Afluente" (1958), um libelo contra a cultura consumista, típica de uma sociedade rica em bens, mas pobre em serviços sociais, e de "O Novo Estado Industrial" (1967), em que ele descreve a transição do poder da aristocracia rural para os grandes empresários industriais e destes para os gestores das modernas corporações. Vêm depois partes de "Economia, Paz e Humor", "Crônicas de um Eterno Liberal", "Era da Incerteza" (que deu nome também a uma série de 13 documentários para a televisão, um amplo percurso por 200 anos da teoria e prática da economia), "Breve História da Euforia Financeira", "1929: O Colapso da Bolsa". O livro termina com o texto de uma conferência, "O Assunto Inacabado do Século" (1999). Nele, Galbraith fala de três assuntos pendentes de solução ainda hoje: a desigualdade na sociedade americana, o fosso entre países ricos e pobres e a ausência de canais de expressão concreta de solidariedade, os arsenais atômicos.
Atribui-se a Galbraith a cunhagem da expressão "conventional wisdom". Pode-se optar por "sabedoria" como equivalente a "wisdom", quase literalmente, e aí a expressão ganha o tom irônico, sugerido por Galbraith quando a empregou pela primeira vez em "The Affluent Society". Essa "sabedoria", disse, é feita de idéias que merecem atenção apenas por sua "aceitabilidade". E como se derruba essa fachada de falsa sapiência, de invalidade prenunciada? "O inimigo da sabedoria convencional não são as idéias, mas a marcha dos acontecimentos", afirma Galbraith no mesmo livro. Os acontecimentos nos Estados Unidos apontam todos, hoje - é o que sugerem as pesquisas pró-Hillary e o repúdio da maioria ao governo Bush - , para a necessidade de uma outra racionalização, externa à "sabedoria" estabelecida, que reconstrua a solidariedade social, esgarçada pela ampliação das diferenças. Hillary foi ao ponto, em discurso de outro dia: "Eu vejo vocês, eu ouço vocês", disse ela, falando da intenção de "reconstruir a classe média" - o que significaria também, por coerência política, rever práticas de governo que ignoram as necessidades dos mais pobres. "Vocês não são invisíveis para mim", afiançou. Galbraith aplaudiria.
Galbraith dedicou-se, então, ao desmonte de supostas verdades, a começar por aqueles princípios econômicos neoclássicos que se enraizaram na academia, na política e nas práticas de governo, interpretações variadas do que, na visão dos habitantes de partes importantes desses universos, deveria ser a opinião dita pública. Quando afirmava que essa "sabedoria" não resistia à evolução dos fatos, Galbraith queria dizer que esses pedaços de suposto saber incontestável já nasciam para ser coisa do passado, como conseqüência de sua própria insubstancialidade, ela mesma instigadora de novas formas de pensar que surgem sob o estímulo, também, daquela transitoriedade. Não seria tarefa para pouco empenho, porém, essa de tentar mover o leme para outra direção, já explicava Keynes, que terminou assim o prefácio à sua "Teoria Geral": "A dificuldade não está nas novas idéias [em desenvolvê-las], mas em como fugir das velhas, que se ramificam em cada canto de nossas mentes." Galbraith entrou nessa briga e nunca mais saiu.
Quando morreu, no ano passado, professor emérito de Harvard, Galbraith mereceu páginas e páginas de obituários, que também serviram à crítica de sua obra. "The Economist", sendo sua linha editorial o que é, até que foi generosa, mas não cedeu por inteiro. Para a revista, Galbraith foi "menos um economista do que uma mistura de sociólogo, cientista político e jornalista" ("Fortune" publicou muitos artigos de Galbraith, o que contribuiu bastante para a popularização de suas idéias, o que também significava trazer Keynes para a atualidade). É mais ou menos isso que muitos economistas gostariam de ser hoje.
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