84) A producao de conhecimento concentrou-se?
A produção do conhecimento nas sociedades contemporâneas:
a concentração e as desigualdades são inevitáveis?
Fernando Antonio Ferreira de Barros:
A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo
(Brasília: Paralelo 15 – Abipti, 2005, 307 p.)
A orelha do livro apresenta o que parece ser, ao mesmo tempo, a maior virtude e a maior fraqueza deste livro importante. Ela começa afirmando o seguinte, com o que concordamos inteiramente: “O conhecimento técnico-científico representa no mundo contemporâneo [não apenas nele, diríamos nós] uma base fundamental para o desenvolvimento socioeconômico das nações. Sua maior ou menor utilização nas estruturas organizacionais e produtivas de cada sociedade pode ser um dos fatores explicativos dos diferentes graus de desenvolvimento alcançados”. Até aí pode-se concordar com o autor, ou com quem elaborou a orelha, mas logo em seguida vem o argumento que justifica o título do livro: “Sua produção e apropriação [isto é, do conhecimento técnico-científico] encontram-se, entretanto, muito concentradas num grupo de países mais desenvolvidos”.
Minha discordância fundamental do autor, devo adiantar desde logo, localiza-se nesta premissa inicial e fundamental, vale dizer, a que dá sentido ao título e sustenta toda a argumentação da obra. Mas o livro tem várias outras qualidades, que vou agora enfatizar, antes de voltar para uma crítica substantiva, na segunda parte desta resenha.
O autor e sua obra
Doutor em sociologia pela UnB e integrante do corpo técnico do CNPq há mais de duas décadas, o autor possui várias obras nessa mesma área, entre elas o livro Confrontos e contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil, resultado de sua dissertação de mestrado. Sua orientadora nesta tese de doutoramento, a prefaciadora Ana Maria Fernandes, enfatiza sua concordância com algumas teses do autor – e não poderia ser de outro modo –, como o papel do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico e na reversão dessas tendências concentradoras, com base nas conhecidas teses do economista coreano Ha-Joon Chang, em Chutando a Escada. O apresentador Lynaldo Cavalcanti destaca por sua vez, que no Brasil “as autoridades têm dedicado atenção quase exclusiva à geração de conhecimento científico, com negligência à sua apropriação, traduzida em novos produtos, serviços e mercados”. Seguindo o autor, porém, o apresentador conclui que, “não obstante os intensos esforços dos países, a distribuição regional dos poderes científico e tecnológico, bem como de desenvolvimento econômico e social, não mudou de forma significativa nos últimos 20 anos” (p. 16-17). Ora, o que caracteriza os últimos 20 anos de desenvolvimento científico e tecnológico no plano mundial é, precisamente, a gradual emergência de países antes dependentes tecnologicamente – Coréia do Sul, China, Índia, vários outros asiáticos, alguns latino-americanos, como o Brasil – nesse panorama antes monótono, dominado tradicionalmente por um punhado de líderes tecnológicos da OCDE.
Em sua introdução, o autor parece concordar com a tese de que, a despeito da dispersão global da produção do conhecimento na atualidade, “as desigualdades de riqueza tendem a persistir, ou mesmo a aumentar”, fazendo com que, as perspectivas de mudança no quadro da capacidade de pesquisa sejam “muito remotas” (p. 23). Ele também acha que essa tendência concentradora da produção e apropriação do conhecimento científico e tecnológico no mundo contemporâneo pode ser a base de uma “nova divisão internacional do trabalho mais rígida, que poderá implicar maior desigualdade de riqueza e exclusão social no contexto mundial” (p. 23). Como ele enfatiza corretamente, “não existem fórmulas mágicas que possam garantir saltos qualitativos a curto prazo para o progresso técnico-científico almejado” (p. 25).
Para montar sua análise, o autor conduziu uma série de entrevistas com dezoito personalidades brasileiras e internacionais dessa área, com base num roteiro de dez grandes questões cobrindo os campos principais de sua pesquisa (nomes e perguntas figuram em dois dos três anexos, sendo o terceiro a agenda de propostas e recomendações efetuadas no projeto “Inventando um futuro melhor”, que o Interacademy Council sugeriu como forma de para reforçar a C&T em todos os países.
O livro compõe-se de cinco capítulos e três anexos, como listados a seguir. O primeiro dá o quadro teórico da produção de conhecimento e sua organização social, com as tendências atuais a uma maior aproximação entre ciência e tecnologia, à pesquisa em rede e a um maior controle e participação social nos rumos de C&T. O capítulo termina, porém, sublinhando a concentração espacial dessa produção nos países desenvolvidos.
O segundo capítulo traça, justamente, o balanço das tendências e características da produção em C&T nos países avançados. Nos EUA, por exemplo, onde ocorreu uma notável constância dos investimentos em P&D de 1960 a 2000, em torno de 2,7% do PIB, observou-se uma tendência à duplicação dos esforços voltados para a pesquisa básica, uma estabilidade na pesquisa aplicada e uma diminuição nos gastos com o desenvolvimento, consoante, provavelmente, a passagem do país de uma sociedade industrial avançada para uma sociedade pós-industrial ou de serviços. Ao longo desse período, o governo federal tem sua importância diminuída no financiamento em quase três vezes, ao passo que aumenta significativamente a participação da indústria, e em menor proporção a das universidades e instituições não-governamentais. É patente, igualmente, a concentração de C&T nos EUA, com um terço da produção científica mundial, em 1988, e mais de dois quintos das patentes registradas nos EUA em 1990 (não exclusivamente americanas, portanto). Não há dúvida de que a tríade mundial nessa área é representada pelos EUA, UE e Japão e o autor enfatiza as principais diferenças entre eles nas diversas vertentes do complexo C&T.
O terceiro capítulo trata da C&T nos países em desenvolvimento, com destaque para China, Índia e Brasil. Uma primeira abordagem enfatiza a precariedade extrema da África nesse particular, o que não configura nenhuma novidade. Não há dúvida, tampouco, de que o Estado é o principal motor dos investimentos nos três grandes do mundo em desenvolvimento, em contraste com a predominância do setor privado na tríade dos desenvolvidos. Os três grandes atores em desenvolvimento também se esforçam para aumentar os investimentos em P&D em proporção do PIB e mesmo que os valores da China possam ser relativamente modestos, as cifras envolvidas, dado o enorme PIB alcançado, já são propriamente gigantescas. A execução de P&D nos três países também é diferenciada, com uma maior proporção para as universidades no caso do Brasil e uma predominância dos institutos nacionais no caso da Índia e em menor proporção no caso da China.
O capítulo quarto enfatiza as desigualdades científicas tecnológicas no contexto da globalização, destacando o autor, em epígrafe, uma frase do SG-ONU Kofi Anan, seßgundo a qual o mundo atualmente é muito mais desigual do que há 40 anos. Este é o pressuposto do trabalho, que associa a tendência à globalização a um agravamento da crise econômica, explicada segundo duas visões alternativas, a dos regulacionistas e a dos neoschumpeterianos. A bibliografia citada é classicamente acadêmica, no sentido mais tradicional da palavra, com a complementação oferecida pelas estatísticas de gastos em P&D, de registros de patentes e entrevistas com os especialistas da área. Parecem naturais, nesse contexto, as críticas à privatização da pesquisa e as “possíveis interferências negativas dos interesses do mercado no direcionamento e apropriação da pesquisa científica” (p. 207). A análise do papel das multinacionais tende a enfatizar seus efeitos negativos, considerados ainda mais sérios no caso dos países em desenvolvimento, que tiveram de fazer os ajustes liberalizantes requeridos pela globalização. As desigualdades entre os países ricos e os em desenvolvimento são maiores no plano tecnológico (patentes) do que no científico, ainda assim avassaladoras.
O foco do quinto e último capítulo é, precisamente, o da concentração espacial da produção de conhecimento, que o autor acredita esteja tendencialmente em expansão. O autor reconhece a interdependência tecnológica existente entre os países avançados, mas prefere acompanhar os que enfatizam que essa “dispersão” se dá, basicamente, dentro da tríade desenvolvida. Ou seja, as empresas multinacionais podem contribuir para a capacitação tecnológica dos países menos desenvolvidos, mas isso não chega a ser “um fato transformador no quadro de enormes desigualdades relativas à produção tecnológica no contexto mundial” (p. 253). O autor não é totalmente negativo quanto às tendências futuras, mas acredita que uma reversão da concentração só poderia ocorrer, no caso dos países em desenvolvimento, a partir de um papel mais ativo dos governos nacionais: o Estado nacional “continua sendo o ator fundamental na condução desse importante processo de capacitação técnico-científica e no estabelecimento e na execução de medidas que poderão trazer mudanças mais significativas no atual mapeamento mundial, regional e nacional da concentração da produção científica e tecnológica” (p. 264).
As conclusões retomam muitos dos argumentos já expostos acima, com algumas seleções capciosas. Por exemplo, enfatizar o lado negativo da globalização: apenas porque em meia centena de países as pessoas são mais pobres do que eram uma década atrás (e a África responde muito por isto), não quer dizer que a humanidade está mais pobre, ao contrário, pois apenas a China e a Índia concentravam algumas centenas de milhões de miseráveis extremos que foram alçados a uma condição de pobreza modesta. A ênfase na concentração, igualmente, não deveria eludir o fato de que a produção própria dos países em desenvolvimento também está crescendo. O autor recorre ao já citado economista coreano Ha-Joon Chang, que acredita que os países desenvolvidos querem impedir os em desenvolvimento de alcançá-los nos planos industrial, científico ou tecnológico, esquecendo este, talvez, que o seu próprio país desmente a hipótese. As perspectivas não parecem animadoras, portanto, e a única maneira de revertê-las, na visão do autor, seria pelo empreendimento de ações dirigidas pelas autoridades políticas, uma vez que os mercados seriam incapazes de reverter a tendência à concentração.
Este é o livro e suas premissas, apresentados de maneira relativamente objetiva. Cabe agora empreender uma avaliação qualitativa em torno dos principais argumentos.
A crítica
O título do livro já representa uma tese: obviamente, a de que a produção do conhecimento tende a se concentrar. Onde, exatamente? Nos países avançados, claro. A tese do livro, aliás defendida na Universidade de Brasília, deve recolher o assentimento de muitos colegas do autor. Em geral, acadêmicos das universidades públicas, que são as que concentram a produção do conhecimento (não no mundo contemporâneo, mas pelo menos no Brasil), tendem a pensar segundo as linhas convencionais, que dividem o mundo em produtores e consumidores de conhecimento especializado, com tendências ao monopólio e à concentração.
Como seria de se esperar, eles também devem partilhar várias outras teses do autor, que são relativamente tradicionais na academia brasileira, a começar pela própria divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e a exploração destes últimos pelos primeiros. Não existe qualquer critério legitimamente racional que possa justificar a separação entre as duas categorias de países, a não ser certa preguiça mental dos seus formuladores, o conservadorismo das instituições internacionais, a acomodação política dos próprios países em desenvolvimento e algumas evidências prima facie que tenderiam, aparentemente, a justificar essa divisão que já tem mais de meio século.
Entre essas evidências, ademais dos conhecidos indicadores relativos à renda, disponibilidade de bens e outros critérios de bem-estar, em geral, se situariam aqueles relativos à produção de ciência e tecnologia em bases propriamente nacionais. Que seja: a autonomia tecnológica, de fato, representa um poderoso indicador de riqueza e poder; mas as linhas divisórias entre os países, nesse particular, são bem mais matizadas do que o simples agrupamento dos membros da ONU em duas ou três categorias de países – havia também o grupo dos socialistas, que desapareceu de forma melancólica na grande transição ao capitalismo dos anos 1990 – o que permitiria circunscrever, inclusive porque é apenas indiretamente que a produção de conhecimento está correlacionada à renda per capita. Em outros termos, a relação não é causal, mas circunstancial, sendo bem mais dependente da educação do que da renda.
A divisão entre os vários grupos de países remonta aos primeiros tempos da ONU, quando se tratava de organizar as agências e comissões setoriais da ONU e suas agendas de prioridades. Do lado mais importante estavam as responsabilidades pela paz e pela segurança internacionais, a cargo, em última instância, de um pequeno grupo de países encastelados, como resultado da Segunda Guerra Mundial, no Conselho de Segurança. Pode-se dizer que os EUA, a França e o Reino Unido, estes dois últimos dispondo de vastos impérios coloniais, constituíam, efetivamente, países desenvolvidos. Mas o que dizer da Rússia e da China, devastadas no conflito, possuindo imensos contingentes populacionais na miséria, contribuindo minimamente, não apenas para os fluxos globais de comércio, finanças e tecnologia, mas, sobretudo, para o estoque global de saberes acumulados nos planos científico e tecnológico? Tratou-se de uma decisão eminentemente política e militar como sabemos.
Do outro lado, a agenda da ONU sempre revelou uma preocupação primordial, quase obsessiva, pode-se dizer, com a questão do desenvolvimento. Cabe lembrar que, nas últimas seis décadas, a ONU ocupou-se bem mais de desenvolvimento do que de paz e de segurança, sendo que suas incursões neste terreno foram bem menos felizes, dada a relutância de grandes e pequenas potências em aceitar intromissão em suas querelas internas ou nos conflitos inter-estatais nos quais estivessem envolvidas. A ONU tem registro de poucas operações de peace-making e bem mais de peace-keeping, quando os maiores danos já foram cometidos contra as populações inocentes. Mas, tampouco sua ação no campo do desenvolvimento foi muito mais feliz, já que passadas várias décadas ditas de desenvolvimento (e muitos bilhões de dólares destinados à cooperação oficial – bilateral e multilateral – ao desenvolvimento), poucos países alteraram radicalmente as condições de partida, e os poucos que o fizeram, não parecem dever nada à ONU ou aos programas oficiais de ajuda ao desenvolvimento. Aqueles poucos países que de fato conseguiram fazer o “salto de barreira” – se é que existe algum – entre a condição anterior de “subdesenvolvidos” para a de “desenvolvidos”, pouco parecem dever à ajuda externa e muito menos aos programas da ONU. Tanto a Coréia do Sul quanto Cingapura, os dois exemplos mais conspícuos, devem suas trajetórias em direção à prosperidade mais ao investimento produtivo – com base na poupança doméstica e na tecnologia importada, legalmente ou não – do que à ajuda externa, de qualquer tipo.
Daí o ceticismo com que devem ser recebidas essas obras que tendem, com uma aborrecida repetição, a dividir o mundo entre os produtores de conhecimento – que seriam, ipso facto, os concentradores – e os demais, em princípio classificados como em desenvolvimento. O modelo adotado é bem mais evidente nas escolas econômicas ditas desenvolvimentistas, que continuam a ver o mundo segundo a estrutura centro-periferia. Mas ele também se reproduz nessas análises sobre a produção científica e tecnológica no plano mundial, que tendem a considerar como um dado fixo que a produção de conhecimento, tanto científico quanto prático, isto é, tecnológico, tende a se concentrar cada vez mais num pequeno grupo de países. A tese é tão auto-induzida quanto sua equivalente no plano do desenvolvimento econômico: como os países atualmente ricos são os que mais produzem tecnologia avançada e seus produtos derivados, essa situação só pode ter tido origem na concentração de recursos, capitais e outros fatores nesses países, em detrimento e com a “colaboração involuntária” dos demais, que transferiram recursos e excedentes – a famosa “extração de mais-valia” da tradição marxiana – para os paises do centro, identificados a dominadores e exploradores.
Como estes países “centrais” e “produtores” de conhecimento mantêm políticas e programas de capacitação tecnológica e de qualificação científica, conclui-se, então, que foi devido a essas políticas e programas que eles conseguiram se desenvolver. Daí à criação de novos programas e políticas, sob a égide da ONU (e suas agências) ou dos países mais ricos que prestam cooperação oficial ao desenvolvimento, vai um pequeno passo que é alegremente dado por todos esses “cooperadores” e “cooperados”, com resultados altamente insatisfatórios, como já constatado depois de seis décadas de ativa assistência aos países menos desenvolvidos, especialmente africanos. Nenhum deles conseguiu de fato se desenvolver, para dizer o mínimo. A mesma situação se reproduz, no plano nacional, em matéria de políticas macroeconômicas setoriais tendentes a “produzir” o tão aspirado desenvolvimento: políticas agrícolas, industriais, tecnológicas e muitas outras ainda, como constatado na experiência latino-americana. Não se pode dizer que o resultado tenha sido magnífico, muito pelo contrário, ao ponto de um conhecido economista do chamado “mainstream” – Gustavo Franco, em uma das suas Crônicas da convergência: ensaios sobre temas já não tão polêmicos (Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, 598 p.). – ter clamado por uma “política não-industrial”.
O fato é que os países hoje desenvolvidos o são não necessariamente em virtude da aplicação de políticas industriais e tecnológicas, ou da implementação de programas governamentais nessas áreas, mas simplesmente em razão de terem conseguido chegar, desde muito cedo, a uma situação de virtual educação universal, bem mais nos ciclos básico e internediário (inclusive técnico-profissional) do que necessariamente no ciclo superior (que emergiu gradualmente e naturalmente a partir da capacitação prévia e ampla nas fases precedentes). O processo pode ter variado aqui e ali, mas nenhum deles chegou ao píncaro sem ter feito antes o dever de casa nas etapas elementares.
Compreende-se, por outro lado, a obsessão com o processo de desenvolvimento – econômico ou tecnológico – dos países ditos retardatários, já que os últimos dois séculos (grosso modo a partir da aceleração das duas primeiras revoluções industriais) conheceram o fenômeno, ao qual os historiadores econômicos dão o nome de “grande divergência”, ou seja, a defasagem crescente entre os níveis de desenvolvimento dos países avançados industrialmente, de um lado, e todos os demais, de outro. Como esse é um fato empiricamente verificável, tende a se considerar essa divergência como algo irrecorrível, inevitável ou tendencialmente agravante, não colmatável pela simples força dos mercados ou da evolução natural das sociedades. Mas, como revelado em alguns trabalhos de Jared Diamond – como em Germes, Armas e Aço, por exemplo – dotados de maior escopo geográfico e abrangência histórica, não há nada de inevitável nesse curso da história. De fato, o processo de divergência parece estar sendo revertido sob nossos olhos, operando-se atualmente uma relativa convergência entre os níveis de desenvolvimento industrial, de renda disponível e de conhecimento auto-gerado, pelo menos em relação a alguns dos atores participantes da grande divergência dos últimos dois ou três séculos, como podem ser, com grande visibilidade, a China e a Índia.
Esses dois países – juntamente com o Brasil – estão justamente no âmago do terceiro capítulo deste livro de Fernando Barros, que constitui uma tentativa acadêmica (relativamente bem sucedida, nesse contexto) para identificar os fatores indutores da “grande divergência” científica entre “concentradores”, de um lado, e os “penalizados”, de outro. China e Índia, precisamente, foram os grandes “divergentes” dos séculos XIX e XX, não necessariamente porque tenham sido dominados, humilhados e expropriados pelos mais ricos – o que também se passou, reconheçamos – mas porque perderam, em algum momento de suas histórias respectivas, a capacidade de continuar inovando nos terrenos tecnológico e militar e se deixaram, assim, dominar e expropriar pelos mais ricos, ou mais capazes militarmente. Considerar que o processo histórico tenha sido o inverso do que realmente foi – isto é, que os mais ricos só se tornaram ricos porque “extrairam” riquezas dos explorados – representaria considerar que basta vontade política para se tornar imperialista, independentemente de uma “acumulação primitiva” (que sempre é propriamente nacional) em capacitação industrial e militar.
O fato é que, a partir das duas últimas décadas do século XX esses dois países convergem, novamente, em direção a padrões de industrialização e a níveis de produção científica mais próximos dos países da OCDE, bem mais rapidamente do que foi o caso nesse período de relativa estagnação (ou mesmo retrocesso, para a China) dos dois séculos anteriores. Um dos problemas da análise conduzida por Fernando Barros em torno do desempenho científico e tecnológico – em geral muito rudimentar – dos países em desenvolvimento é que ele parte de uma suposta tendência dos governos desses países, nas duas últimas décadas, a “se alinhar a programa de ajustamento estrutural e [a] medidas de estabilização de suas economias” (p. 122), supostamente concordes com ditames dos mercados globais. Estas reformas se teriam traduzido “numa maior abertura das economias nacionais [desses países] aos investimentos externos, na eliminação de barreiras protecionistas para toda uma série de produtos manufaturados, na passagem do modelo de substituição de importações para a promoção das exportações, na expansão do setor privado, sobretudo de empresas multinacionais”. “Todas essas medidas de liberalização e privatização”, continua o autor, “implicaram numa redução dos investimentos que o Estado mantinha para determinados setores como a educação e a ciência e a tecnologia” (p. 122).
O problema desse tipo de análise é que China e Índia, nas duas últimas décadas, fizeram exatamente isso que ele parece considerar como fatores negativos e que os problemas dos países mais pobres, com sua inserção econômica internacional e sua dependência tecnológica, não data, em absoluto, das fases de ajuste estrutural e de abertura externa, mas são problemas estruturais que atravessam décadas, senão séculos. Como diria Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos. A mesma falta de visão histórica abrangente que aparece ao se pretender datar a preeminência econômica, tecnológica e militar dos países mais ricos a partir de suas eventuais fases imperialistas (já que os EUA não se conformam ao padrão europeu de dominação direta de outros povos), se reproduz aqui ao especular que o “esmagamento” das capacidades de pesquisa de países em desenvolvimento poderia ser devido aos ajustes estruturais, à la Consenso de Washington, da fase recente.
Que os países mais pobres – notadamente os africanos – continuem a divergir em relação ao desempenho dos mais avançados, não elimina o fato de que grande parte dos países emergentes, entre eles o Brasil (malgrado sua medíocre taxa de crescimento econômico nessa fase, justamente), caminha no sentido de colmatar as diferenças mais gritantes de desenvolvimento – de renda, de capacitação industrial e de inovação tecnológica – em relação aos países mais ricos. Falar de uma tendência à concentração do conhecimento no mundo contemporâneo, como evidenciado no título deste livro, parece, assim, uma contradição nos termos, e isso a mais de um título. Ainda que as desigualdades sejam um fato, a tendência é desconcentradora, paradoxalmente.
O paradoxo é apenas aparente, uma vez que os frutos do progresso científico e tecnológico, a despeito do que afirmam os antiglobalizadores, tendem a se disseminar rapidamente pelo mundo, acompanhando a deslocalização de empresas e a integração de mercados propriciados pela terceira onda de globalização capitalista (as duas primeiras tendo ocorrido, obviamente, na era dos descobrimentos marítimos e na fase de ascensão do capitalismo industrial que precedeu à belle Époque, ou seja, antes da Primeira Guerra Mundial). Hoje em dia – e isso é válido também para o mais pobre dos países africanos, à condição que ele tenha acesso à internet – a maior parte do estoque de conhecimento científico acumulado pela humanidade está livremente disponível a quem tiver acesso às redes eletrônicas de dados.
Nesse sentido, o mundo nunca foi tão “igualitário” como atualmente – ainda que as pressões à desigualdade e a certa tendência concentradora sejam processos residuais –, mas isso não é, necessariamente, uma perversidade dos “produtores de ciência”, e sim o resultado da incapacidade dos mais pobres em acompanhar o ritmo da pesquisa e do desenvolvimento científico e tecnológico para fins produtivos. O que sempre distinguiu, basicamente, os países entre si – sem falar aqui de desenvolvidos e em desenvolvimento – foram os diferenciais de produtividade do trabalho humano, algo intrinsecamente ligado à capacitação educacional de cada um, não à sua capacidade “extratora” de recursos de uns pelos outros.
A visão conspiratória transparece da adesão do autor às teses de Ha-Joon Chang (Chutando a Escada), que acha que os países desenvolvidos querem impedir os menos avançados de alcançá-los e por isso recomendam receitas neoliberais que eles mesmos não seguiram nos seus processos de industrialização. Os fundamentos metodológicos e empíricos desse tipo de raciocínio já foram contestados por diversos autores que não deixaram de apontar suas inconsistências lógicas e históricas, o que não impede sua boa recepção nos meios acadêmicos opostos ao mainstream economics.
As teses desenvolvimentistas, por sua vez, já receberam muitas ressalvas, mas suas bases continuam intactas, como revelado no movimento anti-globalizador. O autor não diz, exatamente, que “um outro mundo científico é possível”. Mas ele talvez gostasse que isso ocorresse segundo as vias tradicionais do investimento estatal e da coordenação das agências públicas com o capital privado. Talvez falte um pouco de confiança na capacidade da própria sociedade se organizar para produzir o saber científico, mas isso começa pela impulsão da educação de base, não necessariamente pelo pródigo apoio à superestrutura algo elitista da comunidade científica. Em todo caso, poucos cientistas acadêmicos dos países em desenvolvimento – como revelado em diversas entrevistas conduzidas pelo autor – parecem confiar na capacidade de suas indústrias nacionais, assim como dos próprios mercados, de forma similar ao que sempre ocorreu nos países desenvolvidos, de colmatar as brechas que os separam destes últimos em matéria de produção e apropriação de conhecimento científico-tecnológico.
O que parece uma constante histórica, na verdade, não é tanto o aprofundamento da brecha científica e tecnológica entre os países, mas, aparentemente, as lamúrias sobre a concentração de saberes nessa área e uma falta de confiança básica na capacidade dos países ditos periféricos de diminuir a distância na produção de ciência e tecnologia. A crer em muitos autores desses países, as desigualdades, quaisquer que sejam suas razões, devem continuar no futuro previsível, configurando assim uma situação estrutural. Este resenhista acredita que a história desmentirá esse tipo de visão pessimista.
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 1687, 25 novembro 2006)
a concentração e as desigualdades são inevitáveis?
Fernando Antonio Ferreira de Barros:
A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo
(Brasília: Paralelo 15 – Abipti, 2005, 307 p.)
A orelha do livro apresenta o que parece ser, ao mesmo tempo, a maior virtude e a maior fraqueza deste livro importante. Ela começa afirmando o seguinte, com o que concordamos inteiramente: “O conhecimento técnico-científico representa no mundo contemporâneo [não apenas nele, diríamos nós] uma base fundamental para o desenvolvimento socioeconômico das nações. Sua maior ou menor utilização nas estruturas organizacionais e produtivas de cada sociedade pode ser um dos fatores explicativos dos diferentes graus de desenvolvimento alcançados”. Até aí pode-se concordar com o autor, ou com quem elaborou a orelha, mas logo em seguida vem o argumento que justifica o título do livro: “Sua produção e apropriação [isto é, do conhecimento técnico-científico] encontram-se, entretanto, muito concentradas num grupo de países mais desenvolvidos”.
Minha discordância fundamental do autor, devo adiantar desde logo, localiza-se nesta premissa inicial e fundamental, vale dizer, a que dá sentido ao título e sustenta toda a argumentação da obra. Mas o livro tem várias outras qualidades, que vou agora enfatizar, antes de voltar para uma crítica substantiva, na segunda parte desta resenha.
O autor e sua obra
Doutor em sociologia pela UnB e integrante do corpo técnico do CNPq há mais de duas décadas, o autor possui várias obras nessa mesma área, entre elas o livro Confrontos e contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil, resultado de sua dissertação de mestrado. Sua orientadora nesta tese de doutoramento, a prefaciadora Ana Maria Fernandes, enfatiza sua concordância com algumas teses do autor – e não poderia ser de outro modo –, como o papel do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico e na reversão dessas tendências concentradoras, com base nas conhecidas teses do economista coreano Ha-Joon Chang, em Chutando a Escada. O apresentador Lynaldo Cavalcanti destaca por sua vez, que no Brasil “as autoridades têm dedicado atenção quase exclusiva à geração de conhecimento científico, com negligência à sua apropriação, traduzida em novos produtos, serviços e mercados”. Seguindo o autor, porém, o apresentador conclui que, “não obstante os intensos esforços dos países, a distribuição regional dos poderes científico e tecnológico, bem como de desenvolvimento econômico e social, não mudou de forma significativa nos últimos 20 anos” (p. 16-17). Ora, o que caracteriza os últimos 20 anos de desenvolvimento científico e tecnológico no plano mundial é, precisamente, a gradual emergência de países antes dependentes tecnologicamente – Coréia do Sul, China, Índia, vários outros asiáticos, alguns latino-americanos, como o Brasil – nesse panorama antes monótono, dominado tradicionalmente por um punhado de líderes tecnológicos da OCDE.
Em sua introdução, o autor parece concordar com a tese de que, a despeito da dispersão global da produção do conhecimento na atualidade, “as desigualdades de riqueza tendem a persistir, ou mesmo a aumentar”, fazendo com que, as perspectivas de mudança no quadro da capacidade de pesquisa sejam “muito remotas” (p. 23). Ele também acha que essa tendência concentradora da produção e apropriação do conhecimento científico e tecnológico no mundo contemporâneo pode ser a base de uma “nova divisão internacional do trabalho mais rígida, que poderá implicar maior desigualdade de riqueza e exclusão social no contexto mundial” (p. 23). Como ele enfatiza corretamente, “não existem fórmulas mágicas que possam garantir saltos qualitativos a curto prazo para o progresso técnico-científico almejado” (p. 25).
Para montar sua análise, o autor conduziu uma série de entrevistas com dezoito personalidades brasileiras e internacionais dessa área, com base num roteiro de dez grandes questões cobrindo os campos principais de sua pesquisa (nomes e perguntas figuram em dois dos três anexos, sendo o terceiro a agenda de propostas e recomendações efetuadas no projeto “Inventando um futuro melhor”, que o Interacademy Council sugeriu como forma de para reforçar a C&T em todos os países.
O livro compõe-se de cinco capítulos e três anexos, como listados a seguir. O primeiro dá o quadro teórico da produção de conhecimento e sua organização social, com as tendências atuais a uma maior aproximação entre ciência e tecnologia, à pesquisa em rede e a um maior controle e participação social nos rumos de C&T. O capítulo termina, porém, sublinhando a concentração espacial dessa produção nos países desenvolvidos.
O segundo capítulo traça, justamente, o balanço das tendências e características da produção em C&T nos países avançados. Nos EUA, por exemplo, onde ocorreu uma notável constância dos investimentos em P&D de 1960 a 2000, em torno de 2,7% do PIB, observou-se uma tendência à duplicação dos esforços voltados para a pesquisa básica, uma estabilidade na pesquisa aplicada e uma diminuição nos gastos com o desenvolvimento, consoante, provavelmente, a passagem do país de uma sociedade industrial avançada para uma sociedade pós-industrial ou de serviços. Ao longo desse período, o governo federal tem sua importância diminuída no financiamento em quase três vezes, ao passo que aumenta significativamente a participação da indústria, e em menor proporção a das universidades e instituições não-governamentais. É patente, igualmente, a concentração de C&T nos EUA, com um terço da produção científica mundial, em 1988, e mais de dois quintos das patentes registradas nos EUA em 1990 (não exclusivamente americanas, portanto). Não há dúvida de que a tríade mundial nessa área é representada pelos EUA, UE e Japão e o autor enfatiza as principais diferenças entre eles nas diversas vertentes do complexo C&T.
O terceiro capítulo trata da C&T nos países em desenvolvimento, com destaque para China, Índia e Brasil. Uma primeira abordagem enfatiza a precariedade extrema da África nesse particular, o que não configura nenhuma novidade. Não há dúvida, tampouco, de que o Estado é o principal motor dos investimentos nos três grandes do mundo em desenvolvimento, em contraste com a predominância do setor privado na tríade dos desenvolvidos. Os três grandes atores em desenvolvimento também se esforçam para aumentar os investimentos em P&D em proporção do PIB e mesmo que os valores da China possam ser relativamente modestos, as cifras envolvidas, dado o enorme PIB alcançado, já são propriamente gigantescas. A execução de P&D nos três países também é diferenciada, com uma maior proporção para as universidades no caso do Brasil e uma predominância dos institutos nacionais no caso da Índia e em menor proporção no caso da China.
O capítulo quarto enfatiza as desigualdades científicas tecnológicas no contexto da globalização, destacando o autor, em epígrafe, uma frase do SG-ONU Kofi Anan, seßgundo a qual o mundo atualmente é muito mais desigual do que há 40 anos. Este é o pressuposto do trabalho, que associa a tendência à globalização a um agravamento da crise econômica, explicada segundo duas visões alternativas, a dos regulacionistas e a dos neoschumpeterianos. A bibliografia citada é classicamente acadêmica, no sentido mais tradicional da palavra, com a complementação oferecida pelas estatísticas de gastos em P&D, de registros de patentes e entrevistas com os especialistas da área. Parecem naturais, nesse contexto, as críticas à privatização da pesquisa e as “possíveis interferências negativas dos interesses do mercado no direcionamento e apropriação da pesquisa científica” (p. 207). A análise do papel das multinacionais tende a enfatizar seus efeitos negativos, considerados ainda mais sérios no caso dos países em desenvolvimento, que tiveram de fazer os ajustes liberalizantes requeridos pela globalização. As desigualdades entre os países ricos e os em desenvolvimento são maiores no plano tecnológico (patentes) do que no científico, ainda assim avassaladoras.
O foco do quinto e último capítulo é, precisamente, o da concentração espacial da produção de conhecimento, que o autor acredita esteja tendencialmente em expansão. O autor reconhece a interdependência tecnológica existente entre os países avançados, mas prefere acompanhar os que enfatizam que essa “dispersão” se dá, basicamente, dentro da tríade desenvolvida. Ou seja, as empresas multinacionais podem contribuir para a capacitação tecnológica dos países menos desenvolvidos, mas isso não chega a ser “um fato transformador no quadro de enormes desigualdades relativas à produção tecnológica no contexto mundial” (p. 253). O autor não é totalmente negativo quanto às tendências futuras, mas acredita que uma reversão da concentração só poderia ocorrer, no caso dos países em desenvolvimento, a partir de um papel mais ativo dos governos nacionais: o Estado nacional “continua sendo o ator fundamental na condução desse importante processo de capacitação técnico-científica e no estabelecimento e na execução de medidas que poderão trazer mudanças mais significativas no atual mapeamento mundial, regional e nacional da concentração da produção científica e tecnológica” (p. 264).
As conclusões retomam muitos dos argumentos já expostos acima, com algumas seleções capciosas. Por exemplo, enfatizar o lado negativo da globalização: apenas porque em meia centena de países as pessoas são mais pobres do que eram uma década atrás (e a África responde muito por isto), não quer dizer que a humanidade está mais pobre, ao contrário, pois apenas a China e a Índia concentravam algumas centenas de milhões de miseráveis extremos que foram alçados a uma condição de pobreza modesta. A ênfase na concentração, igualmente, não deveria eludir o fato de que a produção própria dos países em desenvolvimento também está crescendo. O autor recorre ao já citado economista coreano Ha-Joon Chang, que acredita que os países desenvolvidos querem impedir os em desenvolvimento de alcançá-los nos planos industrial, científico ou tecnológico, esquecendo este, talvez, que o seu próprio país desmente a hipótese. As perspectivas não parecem animadoras, portanto, e a única maneira de revertê-las, na visão do autor, seria pelo empreendimento de ações dirigidas pelas autoridades políticas, uma vez que os mercados seriam incapazes de reverter a tendência à concentração.
Este é o livro e suas premissas, apresentados de maneira relativamente objetiva. Cabe agora empreender uma avaliação qualitativa em torno dos principais argumentos.
A crítica
O título do livro já representa uma tese: obviamente, a de que a produção do conhecimento tende a se concentrar. Onde, exatamente? Nos países avançados, claro. A tese do livro, aliás defendida na Universidade de Brasília, deve recolher o assentimento de muitos colegas do autor. Em geral, acadêmicos das universidades públicas, que são as que concentram a produção do conhecimento (não no mundo contemporâneo, mas pelo menos no Brasil), tendem a pensar segundo as linhas convencionais, que dividem o mundo em produtores e consumidores de conhecimento especializado, com tendências ao monopólio e à concentração.
Como seria de se esperar, eles também devem partilhar várias outras teses do autor, que são relativamente tradicionais na academia brasileira, a começar pela própria divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e a exploração destes últimos pelos primeiros. Não existe qualquer critério legitimamente racional que possa justificar a separação entre as duas categorias de países, a não ser certa preguiça mental dos seus formuladores, o conservadorismo das instituições internacionais, a acomodação política dos próprios países em desenvolvimento e algumas evidências prima facie que tenderiam, aparentemente, a justificar essa divisão que já tem mais de meio século.
Entre essas evidências, ademais dos conhecidos indicadores relativos à renda, disponibilidade de bens e outros critérios de bem-estar, em geral, se situariam aqueles relativos à produção de ciência e tecnologia em bases propriamente nacionais. Que seja: a autonomia tecnológica, de fato, representa um poderoso indicador de riqueza e poder; mas as linhas divisórias entre os países, nesse particular, são bem mais matizadas do que o simples agrupamento dos membros da ONU em duas ou três categorias de países – havia também o grupo dos socialistas, que desapareceu de forma melancólica na grande transição ao capitalismo dos anos 1990 – o que permitiria circunscrever, inclusive porque é apenas indiretamente que a produção de conhecimento está correlacionada à renda per capita. Em outros termos, a relação não é causal, mas circunstancial, sendo bem mais dependente da educação do que da renda.
A divisão entre os vários grupos de países remonta aos primeiros tempos da ONU, quando se tratava de organizar as agências e comissões setoriais da ONU e suas agendas de prioridades. Do lado mais importante estavam as responsabilidades pela paz e pela segurança internacionais, a cargo, em última instância, de um pequeno grupo de países encastelados, como resultado da Segunda Guerra Mundial, no Conselho de Segurança. Pode-se dizer que os EUA, a França e o Reino Unido, estes dois últimos dispondo de vastos impérios coloniais, constituíam, efetivamente, países desenvolvidos. Mas o que dizer da Rússia e da China, devastadas no conflito, possuindo imensos contingentes populacionais na miséria, contribuindo minimamente, não apenas para os fluxos globais de comércio, finanças e tecnologia, mas, sobretudo, para o estoque global de saberes acumulados nos planos científico e tecnológico? Tratou-se de uma decisão eminentemente política e militar como sabemos.
Do outro lado, a agenda da ONU sempre revelou uma preocupação primordial, quase obsessiva, pode-se dizer, com a questão do desenvolvimento. Cabe lembrar que, nas últimas seis décadas, a ONU ocupou-se bem mais de desenvolvimento do que de paz e de segurança, sendo que suas incursões neste terreno foram bem menos felizes, dada a relutância de grandes e pequenas potências em aceitar intromissão em suas querelas internas ou nos conflitos inter-estatais nos quais estivessem envolvidas. A ONU tem registro de poucas operações de peace-making e bem mais de peace-keeping, quando os maiores danos já foram cometidos contra as populações inocentes. Mas, tampouco sua ação no campo do desenvolvimento foi muito mais feliz, já que passadas várias décadas ditas de desenvolvimento (e muitos bilhões de dólares destinados à cooperação oficial – bilateral e multilateral – ao desenvolvimento), poucos países alteraram radicalmente as condições de partida, e os poucos que o fizeram, não parecem dever nada à ONU ou aos programas oficiais de ajuda ao desenvolvimento. Aqueles poucos países que de fato conseguiram fazer o “salto de barreira” – se é que existe algum – entre a condição anterior de “subdesenvolvidos” para a de “desenvolvidos”, pouco parecem dever à ajuda externa e muito menos aos programas da ONU. Tanto a Coréia do Sul quanto Cingapura, os dois exemplos mais conspícuos, devem suas trajetórias em direção à prosperidade mais ao investimento produtivo – com base na poupança doméstica e na tecnologia importada, legalmente ou não – do que à ajuda externa, de qualquer tipo.
Daí o ceticismo com que devem ser recebidas essas obras que tendem, com uma aborrecida repetição, a dividir o mundo entre os produtores de conhecimento – que seriam, ipso facto, os concentradores – e os demais, em princípio classificados como em desenvolvimento. O modelo adotado é bem mais evidente nas escolas econômicas ditas desenvolvimentistas, que continuam a ver o mundo segundo a estrutura centro-periferia. Mas ele também se reproduz nessas análises sobre a produção científica e tecnológica no plano mundial, que tendem a considerar como um dado fixo que a produção de conhecimento, tanto científico quanto prático, isto é, tecnológico, tende a se concentrar cada vez mais num pequeno grupo de países. A tese é tão auto-induzida quanto sua equivalente no plano do desenvolvimento econômico: como os países atualmente ricos são os que mais produzem tecnologia avançada e seus produtos derivados, essa situação só pode ter tido origem na concentração de recursos, capitais e outros fatores nesses países, em detrimento e com a “colaboração involuntária” dos demais, que transferiram recursos e excedentes – a famosa “extração de mais-valia” da tradição marxiana – para os paises do centro, identificados a dominadores e exploradores.
Como estes países “centrais” e “produtores” de conhecimento mantêm políticas e programas de capacitação tecnológica e de qualificação científica, conclui-se, então, que foi devido a essas políticas e programas que eles conseguiram se desenvolver. Daí à criação de novos programas e políticas, sob a égide da ONU (e suas agências) ou dos países mais ricos que prestam cooperação oficial ao desenvolvimento, vai um pequeno passo que é alegremente dado por todos esses “cooperadores” e “cooperados”, com resultados altamente insatisfatórios, como já constatado depois de seis décadas de ativa assistência aos países menos desenvolvidos, especialmente africanos. Nenhum deles conseguiu de fato se desenvolver, para dizer o mínimo. A mesma situação se reproduz, no plano nacional, em matéria de políticas macroeconômicas setoriais tendentes a “produzir” o tão aspirado desenvolvimento: políticas agrícolas, industriais, tecnológicas e muitas outras ainda, como constatado na experiência latino-americana. Não se pode dizer que o resultado tenha sido magnífico, muito pelo contrário, ao ponto de um conhecido economista do chamado “mainstream” – Gustavo Franco, em uma das suas Crônicas da convergência: ensaios sobre temas já não tão polêmicos (Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, 598 p.). – ter clamado por uma “política não-industrial”.
O fato é que os países hoje desenvolvidos o são não necessariamente em virtude da aplicação de políticas industriais e tecnológicas, ou da implementação de programas governamentais nessas áreas, mas simplesmente em razão de terem conseguido chegar, desde muito cedo, a uma situação de virtual educação universal, bem mais nos ciclos básico e internediário (inclusive técnico-profissional) do que necessariamente no ciclo superior (que emergiu gradualmente e naturalmente a partir da capacitação prévia e ampla nas fases precedentes). O processo pode ter variado aqui e ali, mas nenhum deles chegou ao píncaro sem ter feito antes o dever de casa nas etapas elementares.
Compreende-se, por outro lado, a obsessão com o processo de desenvolvimento – econômico ou tecnológico – dos países ditos retardatários, já que os últimos dois séculos (grosso modo a partir da aceleração das duas primeiras revoluções industriais) conheceram o fenômeno, ao qual os historiadores econômicos dão o nome de “grande divergência”, ou seja, a defasagem crescente entre os níveis de desenvolvimento dos países avançados industrialmente, de um lado, e todos os demais, de outro. Como esse é um fato empiricamente verificável, tende a se considerar essa divergência como algo irrecorrível, inevitável ou tendencialmente agravante, não colmatável pela simples força dos mercados ou da evolução natural das sociedades. Mas, como revelado em alguns trabalhos de Jared Diamond – como em Germes, Armas e Aço, por exemplo – dotados de maior escopo geográfico e abrangência histórica, não há nada de inevitável nesse curso da história. De fato, o processo de divergência parece estar sendo revertido sob nossos olhos, operando-se atualmente uma relativa convergência entre os níveis de desenvolvimento industrial, de renda disponível e de conhecimento auto-gerado, pelo menos em relação a alguns dos atores participantes da grande divergência dos últimos dois ou três séculos, como podem ser, com grande visibilidade, a China e a Índia.
Esses dois países – juntamente com o Brasil – estão justamente no âmago do terceiro capítulo deste livro de Fernando Barros, que constitui uma tentativa acadêmica (relativamente bem sucedida, nesse contexto) para identificar os fatores indutores da “grande divergência” científica entre “concentradores”, de um lado, e os “penalizados”, de outro. China e Índia, precisamente, foram os grandes “divergentes” dos séculos XIX e XX, não necessariamente porque tenham sido dominados, humilhados e expropriados pelos mais ricos – o que também se passou, reconheçamos – mas porque perderam, em algum momento de suas histórias respectivas, a capacidade de continuar inovando nos terrenos tecnológico e militar e se deixaram, assim, dominar e expropriar pelos mais ricos, ou mais capazes militarmente. Considerar que o processo histórico tenha sido o inverso do que realmente foi – isto é, que os mais ricos só se tornaram ricos porque “extrairam” riquezas dos explorados – representaria considerar que basta vontade política para se tornar imperialista, independentemente de uma “acumulação primitiva” (que sempre é propriamente nacional) em capacitação industrial e militar.
O fato é que, a partir das duas últimas décadas do século XX esses dois países convergem, novamente, em direção a padrões de industrialização e a níveis de produção científica mais próximos dos países da OCDE, bem mais rapidamente do que foi o caso nesse período de relativa estagnação (ou mesmo retrocesso, para a China) dos dois séculos anteriores. Um dos problemas da análise conduzida por Fernando Barros em torno do desempenho científico e tecnológico – em geral muito rudimentar – dos países em desenvolvimento é que ele parte de uma suposta tendência dos governos desses países, nas duas últimas décadas, a “se alinhar a programa de ajustamento estrutural e [a] medidas de estabilização de suas economias” (p. 122), supostamente concordes com ditames dos mercados globais. Estas reformas se teriam traduzido “numa maior abertura das economias nacionais [desses países] aos investimentos externos, na eliminação de barreiras protecionistas para toda uma série de produtos manufaturados, na passagem do modelo de substituição de importações para a promoção das exportações, na expansão do setor privado, sobretudo de empresas multinacionais”. “Todas essas medidas de liberalização e privatização”, continua o autor, “implicaram numa redução dos investimentos que o Estado mantinha para determinados setores como a educação e a ciência e a tecnologia” (p. 122).
O problema desse tipo de análise é que China e Índia, nas duas últimas décadas, fizeram exatamente isso que ele parece considerar como fatores negativos e que os problemas dos países mais pobres, com sua inserção econômica internacional e sua dependência tecnológica, não data, em absoluto, das fases de ajuste estrutural e de abertura externa, mas são problemas estruturais que atravessam décadas, senão séculos. Como diria Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos. A mesma falta de visão histórica abrangente que aparece ao se pretender datar a preeminência econômica, tecnológica e militar dos países mais ricos a partir de suas eventuais fases imperialistas (já que os EUA não se conformam ao padrão europeu de dominação direta de outros povos), se reproduz aqui ao especular que o “esmagamento” das capacidades de pesquisa de países em desenvolvimento poderia ser devido aos ajustes estruturais, à la Consenso de Washington, da fase recente.
Que os países mais pobres – notadamente os africanos – continuem a divergir em relação ao desempenho dos mais avançados, não elimina o fato de que grande parte dos países emergentes, entre eles o Brasil (malgrado sua medíocre taxa de crescimento econômico nessa fase, justamente), caminha no sentido de colmatar as diferenças mais gritantes de desenvolvimento – de renda, de capacitação industrial e de inovação tecnológica – em relação aos países mais ricos. Falar de uma tendência à concentração do conhecimento no mundo contemporâneo, como evidenciado no título deste livro, parece, assim, uma contradição nos termos, e isso a mais de um título. Ainda que as desigualdades sejam um fato, a tendência é desconcentradora, paradoxalmente.
O paradoxo é apenas aparente, uma vez que os frutos do progresso científico e tecnológico, a despeito do que afirmam os antiglobalizadores, tendem a se disseminar rapidamente pelo mundo, acompanhando a deslocalização de empresas e a integração de mercados propriciados pela terceira onda de globalização capitalista (as duas primeiras tendo ocorrido, obviamente, na era dos descobrimentos marítimos e na fase de ascensão do capitalismo industrial que precedeu à belle Époque, ou seja, antes da Primeira Guerra Mundial). Hoje em dia – e isso é válido também para o mais pobre dos países africanos, à condição que ele tenha acesso à internet – a maior parte do estoque de conhecimento científico acumulado pela humanidade está livremente disponível a quem tiver acesso às redes eletrônicas de dados.
Nesse sentido, o mundo nunca foi tão “igualitário” como atualmente – ainda que as pressões à desigualdade e a certa tendência concentradora sejam processos residuais –, mas isso não é, necessariamente, uma perversidade dos “produtores de ciência”, e sim o resultado da incapacidade dos mais pobres em acompanhar o ritmo da pesquisa e do desenvolvimento científico e tecnológico para fins produtivos. O que sempre distinguiu, basicamente, os países entre si – sem falar aqui de desenvolvidos e em desenvolvimento – foram os diferenciais de produtividade do trabalho humano, algo intrinsecamente ligado à capacitação educacional de cada um, não à sua capacidade “extratora” de recursos de uns pelos outros.
A visão conspiratória transparece da adesão do autor às teses de Ha-Joon Chang (Chutando a Escada), que acha que os países desenvolvidos querem impedir os menos avançados de alcançá-los e por isso recomendam receitas neoliberais que eles mesmos não seguiram nos seus processos de industrialização. Os fundamentos metodológicos e empíricos desse tipo de raciocínio já foram contestados por diversos autores que não deixaram de apontar suas inconsistências lógicas e históricas, o que não impede sua boa recepção nos meios acadêmicos opostos ao mainstream economics.
As teses desenvolvimentistas, por sua vez, já receberam muitas ressalvas, mas suas bases continuam intactas, como revelado no movimento anti-globalizador. O autor não diz, exatamente, que “um outro mundo científico é possível”. Mas ele talvez gostasse que isso ocorresse segundo as vias tradicionais do investimento estatal e da coordenação das agências públicas com o capital privado. Talvez falte um pouco de confiança na capacidade da própria sociedade se organizar para produzir o saber científico, mas isso começa pela impulsão da educação de base, não necessariamente pelo pródigo apoio à superestrutura algo elitista da comunidade científica. Em todo caso, poucos cientistas acadêmicos dos países em desenvolvimento – como revelado em diversas entrevistas conduzidas pelo autor – parecem confiar na capacidade de suas indústrias nacionais, assim como dos próprios mercados, de forma similar ao que sempre ocorreu nos países desenvolvidos, de colmatar as brechas que os separam destes últimos em matéria de produção e apropriação de conhecimento científico-tecnológico.
O que parece uma constante histórica, na verdade, não é tanto o aprofundamento da brecha científica e tecnológica entre os países, mas, aparentemente, as lamúrias sobre a concentração de saberes nessa área e uma falta de confiança básica na capacidade dos países ditos periféricos de diminuir a distância na produção de ciência e tecnologia. A crer em muitos autores desses países, as desigualdades, quaisquer que sejam suas razões, devem continuar no futuro previsível, configurando assim uma situação estrutural. Este resenhista acredita que a história desmentirá esse tipo de visão pessimista.
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 1687, 25 novembro 2006)
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