Book Reviews

24 julho, 2006

77) Um livro sobre política externa por uma voz autorizada: o SG-MRE em pessoa

LIVROS - LANÇAMENTO
Um roteiro soberano para a política externa

Livro de Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty, explicita a política internacional do governo, articula-a com os impasses internos e traça roteiro para superação das vulnerabilidades externas do Brasil. A direita vai odiar.

Gilberto Maringoni - Carta Maior, 24/07/2006

SÃO PAULO - Quem quiser conhecer mais a fundo as estratégias do Brasil no cenário internacional, nestes dias em que o Mercosul se reforça com a adesão da Venezuela e possível ingresso da Bolívia e de Cuba, não pode perder o volume que acaba de chegar às boas casas do ramo. Trata-se de “Desafios brasileiros na era dos gigantes” (Editora Contraponto, 456 páginas, R$ 50), do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. É um detalhado volume sobre os impasses do desenvolvimento brasileiro no conturbado cenário internacional pós-queda do muro de Berlim. Apesar de não ser um documento oficial, a peça é importante por revelar as idéias do segundo homem da área externa do governo. Pelo conteúdo e pelos rumos que aponta, em matéria de fortalecimento da ação do Estado e da independência nacional, é também um manual do antitucanês na gestão dos negócios públicos.

COLOQUIAL E ERUDITO
O livro do secretário-geral do Itamaraty tem o tom coloquial de uma boa conversa, alinhavada por uma notável erudição e conhecimento de causa das tensões internas e externas colocadas diante da economia e da soberania nacional. Didaticamente, ele aponta um a um os diversos projetos em conflito na definição dos rumos do país, buscando fazer um livro quase enciclopédico. São ao todo 12 ensaios, versando sobre os grupos em disputa pelo poder, as causas estruturais das dificuldades internas, como o desemprego, as más condições de vida e a violência, o papel do Estado e suas relações com as diversas modalidades do capital, o território, as estratégias econômicas e políticas de desenvolvimento e suas implicações culturais e sociais.

Não faltam críticas a saídas como a Alca e propostas de liberalização comercial no âmbito da OMC, que “visam a desregulamentar as atividades econômicas na periferia (...) com o objetivo de impedir que os Estados executem políticas ativas de desenvolvimento”.

Na América Latina, Guimarães, um explícito defensor da ampliação e diversificação do Mercosul, não esconde sua admiração pelo “governo democrático de Hugo Chávez”. Este sofreria “os efeitos de uma operação internacional da mídia e da academia, que procura caracterizá-lo como louco e ditatorial”. Sem meias palavras, o secretário-geral do Itamaraty critica as violações de fronteira motivadas pela execução do Plano Colômbia, amplo projeto militar financiado pelos Estados Unidos.

O livro é também um contundente libelo contra o neoliberalismo e as políticas de livre movimentação de capitais, desregulamentação e abertura comercial. Com base nisso, ataca as políticas de dependência tecnológica e suas dramáticas conseqüências no nível de emprego e direitos trabalhistas. “Durante o período que se inicia em 1990, o Brasil foi convencido de que, na era da globalização, o que valia era o capital, sua eficiência e sua competitividade, que a preocupação com o emprego (...) era antiquada e desnecessária, enquanto que o Estado e a soberania seriam relíquias de um passado ruim. Na base de tudo, estaria o capital – sem pátria, abundante, progressista e capaz de tudo resolver -, desde que fosse tratado sem distinções e que não se colocassem restrições aos seus movimentos de ingresso e de saída”.

Formado na tradição do Itamaraty, reforçada pela gestão do chanceler Azeredo da Silveira (1974-1979), Samuel Pinheiro Guimarães é conhecido por suas decididas posições nacionalistas. Odiado por editorialistas e editores de órgãos de extrema-direita – como o jornal “O Estado de S. Paulo” e a revista “Veja” -, ele foi afastado de suas funções do Ministério das Relações Exteriores em 2001, pelo então chanceler Celso Lafer, por suas posições contra a Alca.

POLÍTICA INTERNA E VULNERABILIDADES
Guimarães sabe ser impossível examinar a área internacional sem voltar-se para a política doméstica. Aqui ele é implacável: “As questões que atormentam o quotidiano dos brasileiros – ignorância, pobreza, violência, poluição, racismo, corrupção, arbítrio, mistificação, desemprego, miséria e opulência – são manifestações de extraordinárias disparidades, das crônicas vulnerabilidades e do desigual subdesenvolvimento que caracterizam a sociedade brasileira”. Para ele, as vulnerabilidades externas “estão intimamente vinculadas às disparidades internas e aos processos de concentração de poder que as criam a agravam”.

Há uma lógica importante na manutenção dessas desigualdades: “A despolitização da massa dos excluídos (e mesmo das classes médias) é uma estratégia importante para a sobrevivência e a expansão da estrutura hegemônica de poder”. Um pouco adiante sobram farpas para a imprensa: “Hoje em dia, a mídia, em especial a televisão, compartilha com as religiões conservadoras o exercício dessa função quotidiana de despolitização, por meio do estímulo incessante ao individualismo e ao consumo; da exaltação dos bem-sucedidos economicamente em atividades pop, tais como desportistas e artistas, em especial se forem oriundos da massa oprimida; da promoção do antagonismo e rejeição à política; da denúncia estridente mas descontínua dos escândalos de corrupção”.

Por fim, apesar de defender claramente o governo Lula, classificado por ele como “uma nova etapa na disputa de projetos”, as críticas do livro poderiam ser extensivas à atuação oficial no Congresso. Veja-se o trecho: “No processo legislativo, de um lado os grandes interesses econômicos financiam as eleições e organizam seus representantes em defesa de legislação que garanta seus privilégios enquanto o Governo, de seu lado, por meio do controle da liberação de verbas e do preenchimento de cargos, teve sempre a possibilidade de conquistar o voto de parlamentares e assim obter seu apoio”. Uma versão anterior desse capítulo (“Os donos do poder, a macroestrutura”), que circulou amplamente pela internet há cerca de um ano, era bem mais explícita. Ao invés de falar em “conquistar o voto de parlamentares”, Guimarães valia-se do termo “comprar o voto”.

VULNERABILIDADES EXTERNAS
As obsessões de Samuel Pinheiro Guimarães são as vulnerabilidades externas do país. Ele as divide entre vulnerabilidades econômica, política e militar. As primeiras se manifestam “pela concentração ainda elevada da pauta exportadora em produtos primários e semi-elaborados”. No âmbito financeiro, “o crônico endividamento externo (...) é permanentemente estimulado (...) como forma de disciplinar as políticas domésticas”.

Em terceiro lugar, Guimarães coloca que “A vulnerabilidade política e militar decorre da inexistência ou insuficiência de produção de material bélico e de pesquisa tecnológica na área de armamentos; da convicção ideológica por parte de certas elites da escassez de poder do Brasil e da conseqüente (...) necessidade de alinhamento político e, finalmente, do complexo de inferioridade político-militar, de natureza e origem colonial, que inclui o medo do pecado mortal que é, para uma colônia, ter armas”.

O autor deplora o “amplo esforço de desarmamento dos países já desarmados pela política de não-proliferação de armas de destruição em massa e de mísseis, de redução das Forças Armadas convencionais da periferia”. Ao mesmo tempo, acontece “todo um esforço de consolidação jurídica do poder das grandes potências pela ampliação informal da jurisdição territorial-militar da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte” e da competência do Conselho de Segurança da ONU”.

A conclusão do livro, nesse assunto, é clara: é importante “dotar gradual e firmemente as Forças Armadas de capacidade dissuasória adequada e compatível com as necessidades decorrentes das características de território, da população e do potencial de desenvolvimento brasileiro”.

DESAFIOS A VENCER
Após realizar um amplo e detalhado diagnóstico de nossos descaminhos, Guimarães artcula os desafios da sociedade brasileira. Eles seriam, fundamentalmente:

1. “A eliminação gradual, porém firme e constante de suas disparidades internas”. Estas se referem à “concentração de renda e de riqueza; à privação e alienação cultural; ao acesso à tecnologia; à discriminação racial e de gênero ilegais, mas reais; à política, pela impudente e decisiva influência do poder econômico”, nas esferas regional e social;

2. “A eliminação das crônicas vulnerabilidades externas”, nos campos econômico, tecnológico, político, militar e ideológico;

3. “A realização de seu potencial econômico, político e militar”.

Segundo o livro, o enfrentamento positivo desses três desafios colocará o Brasil como uma das principais grandes potências, o que “afetará a correlação de poder em nível americano e mundial”. Nesse quadro, torna-se necessária uma articulação sólida entre Brasil e Argentina, no âmbito do Mercosul. Como pano de fundo está a dominação do “império americano”.

Os candidatos a presidente que se consideram de esquerda, ou pelo menos progressistas deveriam dar uma lida nessas páginas. Suas teses alicerçam qualquer programa de governo que almeje se orientar pela soberania e pela justiça social.

REPAROS
Dois reparos podem ser feitos ao livro. O primeiro é que, para uma segunda edição, valeria a pena realizar uma revisão mais detalhada, que aparasse algumas redundâncias entre os artigos.

O segundo é ser mais claro na classificação do que entende por “patriota”. Numa lista, arrolada no final do volume, sobre quais seriam os personagens tidos como “patriotas que compreenderam a necessidade de promover a industrialização do país”, um dos nomes mencionados – além de Roberto Simonsen, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Celso Furtado - é o do ex-presidente Ernesto Geisel. Seria positiva uma maior explicitação desse tópico. Se é verdade que no governo do então general o Brasil completou sua cadeia produtiva, elaborou o último planejamento econômico de longo curso – o II Plano Nacional de Desenvolvimento – e assentou as bases de uma política externa soberana, é necessário mirar o outro lado da moeda. O governo Geisel, entre outros desmandos, fechou o Congresso em 1977 e acobertou os assassinatos de dirigentes do PCB (como Davi Capistrano Costa) em 1974, de Vladimir Herzog, em 1975, e de parte do Comitê Central do PCdoB, em 1976, na Lapa, em São Paulo.

A citação nem de longe compromete o livro. Mas dá munição ao cinismo da direita, que sempre apoiou a ditadura e que agora busca cantar de galo como democrata de última hora.

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E os primeiros comentários:


Igor T Bandeira
Tendência: Contra
Comentário:
Não consigo entender quais seriam as vantagens para o Brasil de um programa de militarização ou de busca de armamentos atômicos. Concordo que o domínio da tecnologia é importante, mas ter a bomba em si não seria vantajoso em termos de balança de poder regional. Outra crítica é achar que o governo de Hugo Chávez é uma democracia e que a Venezuela é, na verdade, vítima da imprensa internacional que pretende difamá-la por suas posições contrárias ao capitalismo americano. Essa seria uma leitura bem rasa de nosso vizinho do norte.

Pablo Silva Arruti
Tendência: Contra
Comentário:
Com respeito a militarização eu discordo totalmente. Me parece ridiculo em tempos de bomba atomica tomar qualquer posição a favor do aumento do poderio bélico brasileiro, é querer retomar as tensões antigas da guerra fria, agora entre um EUA ultracapitalista e uma america latina semisocialista. Eu fico triste de saber que alguem com tanto conhecimento defende uma posição tão perigosa como esta. A historia nos mostra que as armas matam muito mais os pobres, se ele defende os pobres que não defenda as armas. Eu sou um pacifista convicto, não acredito que a violencia ou o medo melhorem o mundo de forma alguma. A paz só resulta do respeito, e armas só geram medo.


Nome: Renato Calisto Drumond
Tendência: Neutro
Comentário:
O artigo possui um erro: a extrema-direita se caracteriza principalmente pelo seu nacionalismo exacerbado. Logo, se o autor do livro é criticado pelo seu nacionalismo, essa crítica não pode partir da extrema-direita.