67) O tao vilipendiado investimento estrangeiro direto
A propósito do lviro:
Crise e Oportunidade: O Brasil e o Cenário Internacional
Antonio Corrêa de Lacerda, organizador
Lazuli, 328 págs., 2006; R$ 40
Incertezas de uma longa jornada mundo adentro
Por Cyro Andrade
jornal Valor Econômico, 29/06/2006
De 1993 a 2003, os dividendos pagos a não-residentes como proporção do estoque de investimento direto estrangeiro (IDE) realizado em empresas no Brasil ficaram na média de 3,3%. Pode-se concluir, então, que o IDE é um capital bastante "barato". A avaliação, baseada em números declarados pelas mesmas empresas que participaram dos censos do capital estrangeiro realizados pelo Banco Central (BC) em 1996 e 2001, é de Gustavo Franco. O ex-presidente do BC também considera "obtusa" a "ótica estritamente cambial", que trata o IDE como ítem indesejável do "passivo externo", por agravar a "vulnerabilidade" do país. Ao erro de incluir os estoques de IDE no passivo externo (o capital integralizado é 'não exigível', por ser conta de natureza patrimonial) soma-se, então, um segundo, na interpretação de Franco, contido na intenção de diminuir a importância do investimento direto ao se chamar de vulnerabilidade o que seria internacionalização.
Em artigo que abre a série publicada no livro "Crise e Oportunidade - O Brasil e o Cenário Internacional", Franco apresenta um longo arrazoado para justificar que o correto é contabilizar o IDE como um "ativo estratégico", por ser "elemento fundamental no processo de construção do setor real da economia, veículo de transferência de tecnologia e capacidade gerencial, de estabelecimento de vínculos com a economia global, diretos e indiretos, comerciais e financeiros, e de criação de capacidade produtiva". Além de "barato".
O investimento estrangeiro, ainda às vezes associado, por hábitos históricos, a aspectos sombrios do capitalismo, é, de fato, protagonista de presença marcante nas relações de produção internacionalizada. E se reforça nessa condição ao fazer, hoje mais do que em qualquer época, a liga globalizante entre as estratégias das empresas multinacionais e as tendências do comércio e da finança. Em "Crise e Oportunidade" os articulistas examinam aspectos macro e microeconômicos da imersão do Brasil nesse amálgama de interinfluências complexas, e inevitáveis. São textos que, na maioria, informam sem entediar e oferecem opiniões instigantes, a começar pelas de Gustavo Franco, que se serve de dados estatísticos levantados nos censos do capital estrangeiro realizados pelo BC em 1996 e 2001.
Entre um censo e outro, o fluxo de IDE no Brasil passou de R$ 40,5 bilhões (6.322 empresas respondentes) para R$ 100 bilhões (11.404 empresas), o que corresponde a mais que o dobro do estoque acumulado até 1995 e reflete um aumento da participação brasileira nos fluxos mundiais de IDE, de 0,37% em 1993 para um máximo, no período, de 3,79% em 1998. O capital integralizado pertencente a não-residentes passou de R$ 40,5 bilhões para R$ 201,4 bilhões. Os ativos totais foram de R$ 272,6 bilhões para R$ 914,0 bilhões.
São efeitos diretos da estabilização econômica, "números expressivos, que servem para demonstrar que uma etapa muito especial teve lugar nesses anos no histórico de relacionamento entre o Brasil e o IDE", afirma Franco. É um processo: os próximos anos deverão mostrar como essa onda de investimento direto externo, "maior que tudo que tivemos antes, vai afetar a economia brasileira no futuro".
Nessa transição, sempre haverá alguma passagem por situações derivadas de dois fatos: as empresas do censo, confirmou-se nos dois levantamentos, têm maior propensão a exportar e a importar do que as nacionais; e cresceu o comércio "intrafirma", aquele em que a contraparte no exterior é controladora ou coligada. Está aí, em retrato de corpo inteiro, a produção internacionalizada, sinônimo perfeito de globalização, algo que, diz Franco, "temos que entender melhor, pois não é muito consistente com 'substituir importações com vistas à auto-suficiência', velho hábito brasileiro que resiste ao desuso" - como também não serviria para endossar propostas de 'política industrial'".
Há políticas e políticas. A Unctad, por exemplo, reconhece que tem sido favorável ao aumento dos fluxos de IDE para o Brasil, desde 2004, o impacto de "uma nova política industrial e de inovação" adotada no país, "que concede incentivos para investimentos em certos setores". Naquele ano, de recuperação econômica em toda a América Latina, depois de um longo período de estagnação, o aumento do investimento estrangeiro no Brasil foi de 79%, bem acima dos 44% para o conjunto da região, que recebeu um total de US$ 68 bilhões, dos quais 27% vieram para o Brasil, destinatário líder da área, quase empatado com o México, com 25%. Em 2004, também, o Brasil foi o primeiríssimo, na América Latina, como exportador de IDE, respondendo por US$ 9,5 bilhões de um total de US$ 11 bilhões.
Na vastidão dos US$ 897 bilhões de influxos de IDE que andaram pelo mundo em 2005, segundo a Unctad, os números brasileiros são um fiapo: para cá vieram US$ 16 bilhões (menos que em 2004, portanto), de US$ 72 bilhões recebidos pela região (mais 5%). O aumento de 11% na Ásia e Oceania deu US$ 173 bilhões para a região, dos quais a China levou US$ 60 bilhões, o mesmo valor de 2004.
Suponha-se que se faça no Brasil tudo que manda o melhor figurino reformista pró-atração de IDE em larga escala (no livro, a economista Maria Helena Zockun dá bons exemplos dos muitos fatores de desestímulo que persistem, e sugere modos de superá-los). É programa para no mínimo dez mandatos de governos iluminados. Que se faça o possível, então. O páreo continuará duro. Por que não deverá desfazer-se tão cedo a preferência pelo investimento intramuros no centro do mundo. Em 2005, os fluxos de IDE para os países desenvolvidos cresceram 38%, depois de uma retração de quatro anos. Com o interessante detalhe de que a virada se deu principalmente por causa dos investimentos feitos no Reino Unido, destinatário líder de IDE pela primeira vez desde 1977.
Outro sinal dessa tendência centralizante: na movimentação dos US$ 2,9 trilhões em fusões e aquisições, que são a outra face do IDE realizado em 2005, o maior aumento de negócios transnacionais ocorreu na Europa. E os investimentos novos caíram um pouco, mas na América Latina a queda foi pronunciada, chegando a 30%.
Como em outros aspectos da globalização, porém, também na questão do IDE cada país escolhe seu caminho na longa jornada mundo a dentro. E só saberá se é possível chegar lá fazendo a viagem. "Crise e Oportunidade" é um bom guia para se compreender o tamanho do desafio.
Crise e Oportunidade: O Brasil e o Cenário Internacional
Antonio Corrêa de Lacerda, organizador
Lazuli, 328 págs., 2006; R$ 40
Incertezas de uma longa jornada mundo adentro
Por Cyro Andrade
jornal Valor Econômico, 29/06/2006
De 1993 a 2003, os dividendos pagos a não-residentes como proporção do estoque de investimento direto estrangeiro (IDE) realizado em empresas no Brasil ficaram na média de 3,3%. Pode-se concluir, então, que o IDE é um capital bastante "barato". A avaliação, baseada em números declarados pelas mesmas empresas que participaram dos censos do capital estrangeiro realizados pelo Banco Central (BC) em 1996 e 2001, é de Gustavo Franco. O ex-presidente do BC também considera "obtusa" a "ótica estritamente cambial", que trata o IDE como ítem indesejável do "passivo externo", por agravar a "vulnerabilidade" do país. Ao erro de incluir os estoques de IDE no passivo externo (o capital integralizado é 'não exigível', por ser conta de natureza patrimonial) soma-se, então, um segundo, na interpretação de Franco, contido na intenção de diminuir a importância do investimento direto ao se chamar de vulnerabilidade o que seria internacionalização.
Em artigo que abre a série publicada no livro "Crise e Oportunidade - O Brasil e o Cenário Internacional", Franco apresenta um longo arrazoado para justificar que o correto é contabilizar o IDE como um "ativo estratégico", por ser "elemento fundamental no processo de construção do setor real da economia, veículo de transferência de tecnologia e capacidade gerencial, de estabelecimento de vínculos com a economia global, diretos e indiretos, comerciais e financeiros, e de criação de capacidade produtiva". Além de "barato".
O investimento estrangeiro, ainda às vezes associado, por hábitos históricos, a aspectos sombrios do capitalismo, é, de fato, protagonista de presença marcante nas relações de produção internacionalizada. E se reforça nessa condição ao fazer, hoje mais do que em qualquer época, a liga globalizante entre as estratégias das empresas multinacionais e as tendências do comércio e da finança. Em "Crise e Oportunidade" os articulistas examinam aspectos macro e microeconômicos da imersão do Brasil nesse amálgama de interinfluências complexas, e inevitáveis. São textos que, na maioria, informam sem entediar e oferecem opiniões instigantes, a começar pelas de Gustavo Franco, que se serve de dados estatísticos levantados nos censos do capital estrangeiro realizados pelo BC em 1996 e 2001.
Entre um censo e outro, o fluxo de IDE no Brasil passou de R$ 40,5 bilhões (6.322 empresas respondentes) para R$ 100 bilhões (11.404 empresas), o que corresponde a mais que o dobro do estoque acumulado até 1995 e reflete um aumento da participação brasileira nos fluxos mundiais de IDE, de 0,37% em 1993 para um máximo, no período, de 3,79% em 1998. O capital integralizado pertencente a não-residentes passou de R$ 40,5 bilhões para R$ 201,4 bilhões. Os ativos totais foram de R$ 272,6 bilhões para R$ 914,0 bilhões.
São efeitos diretos da estabilização econômica, "números expressivos, que servem para demonstrar que uma etapa muito especial teve lugar nesses anos no histórico de relacionamento entre o Brasil e o IDE", afirma Franco. É um processo: os próximos anos deverão mostrar como essa onda de investimento direto externo, "maior que tudo que tivemos antes, vai afetar a economia brasileira no futuro".
Nessa transição, sempre haverá alguma passagem por situações derivadas de dois fatos: as empresas do censo, confirmou-se nos dois levantamentos, têm maior propensão a exportar e a importar do que as nacionais; e cresceu o comércio "intrafirma", aquele em que a contraparte no exterior é controladora ou coligada. Está aí, em retrato de corpo inteiro, a produção internacionalizada, sinônimo perfeito de globalização, algo que, diz Franco, "temos que entender melhor, pois não é muito consistente com 'substituir importações com vistas à auto-suficiência', velho hábito brasileiro que resiste ao desuso" - como também não serviria para endossar propostas de 'política industrial'".
Há políticas e políticas. A Unctad, por exemplo, reconhece que tem sido favorável ao aumento dos fluxos de IDE para o Brasil, desde 2004, o impacto de "uma nova política industrial e de inovação" adotada no país, "que concede incentivos para investimentos em certos setores". Naquele ano, de recuperação econômica em toda a América Latina, depois de um longo período de estagnação, o aumento do investimento estrangeiro no Brasil foi de 79%, bem acima dos 44% para o conjunto da região, que recebeu um total de US$ 68 bilhões, dos quais 27% vieram para o Brasil, destinatário líder da área, quase empatado com o México, com 25%. Em 2004, também, o Brasil foi o primeiríssimo, na América Latina, como exportador de IDE, respondendo por US$ 9,5 bilhões de um total de US$ 11 bilhões.
Na vastidão dos US$ 897 bilhões de influxos de IDE que andaram pelo mundo em 2005, segundo a Unctad, os números brasileiros são um fiapo: para cá vieram US$ 16 bilhões (menos que em 2004, portanto), de US$ 72 bilhões recebidos pela região (mais 5%). O aumento de 11% na Ásia e Oceania deu US$ 173 bilhões para a região, dos quais a China levou US$ 60 bilhões, o mesmo valor de 2004.
Suponha-se que se faça no Brasil tudo que manda o melhor figurino reformista pró-atração de IDE em larga escala (no livro, a economista Maria Helena Zockun dá bons exemplos dos muitos fatores de desestímulo que persistem, e sugere modos de superá-los). É programa para no mínimo dez mandatos de governos iluminados. Que se faça o possível, então. O páreo continuará duro. Por que não deverá desfazer-se tão cedo a preferência pelo investimento intramuros no centro do mundo. Em 2005, os fluxos de IDE para os países desenvolvidos cresceram 38%, depois de uma retração de quatro anos. Com o interessante detalhe de que a virada se deu principalmente por causa dos investimentos feitos no Reino Unido, destinatário líder de IDE pela primeira vez desde 1977.
Outro sinal dessa tendência centralizante: na movimentação dos US$ 2,9 trilhões em fusões e aquisições, que são a outra face do IDE realizado em 2005, o maior aumento de negócios transnacionais ocorreu na Europa. E os investimentos novos caíram um pouco, mas na América Latina a queda foi pronunciada, chegando a 30%.
Como em outros aspectos da globalização, porém, também na questão do IDE cada país escolhe seu caminho na longa jornada mundo a dentro. E só saberá se é possível chegar lá fazendo a viagem. "Crise e Oportunidade" é um bom guia para se compreender o tamanho do desafio.
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