37) Perfis biograficos brasileiros: nova colecao de livros
Um retrato nada oficial do Brasil
Coleção Perfis Brasileiros reúne biografias pouco convencionais de políticos, escritores e artistas
Antonio Gonçalves Filho
Nos últimos três ou quatro anos o mundo foi inundado por um tsunami de biografias de Napoleão, mas só uma, ao que se tem notícia, foi parar na mesa de cabeceira do presidente George Bush: a do acadêmico Paul Johnson, único a dizer com todas as letras que o general francês foi o precursor dos ditadores modernos e dos estados totalitários. Pois foi justamente a biografia de Paul Johnson, lançada lá fora há quatro anos, que inspirou o jornalista Elio Gaspari e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz a conceber e coordenar a coleção Perfis Brasileiros, série de biografias de líderes, escritores e artistas que a Companhia das Letras coloca hoje nas livrarias de todo o País. (preços entre R$ 33 e R$ 38).
Johnson é uma figura controvertida por apoiar a política externa do presidente Bush, mas ninguém discute sua biografia de Napoleão. Ele conta com extraordinária habilidade a carreira e a vida do general francês que, no começo do século 19, levou jovens filhos de fazendeiros a morrer por uma causa injusta - a sua, de criar um império maior que a vida.
Nas quatro primeiras biografias da nova série Perfis Brasileiros não há nenhum militar ou político tão ambicioso como Napoleão, mas Maurício de Nassau bem que tentou criar no Brasil um paraíso capitalista durante a ocupação holandesa. Nassau desembarcou no Recife há 369 anos na condição de governador. Não conseguiu impor sua ideologia protestante, privatista e racionalista, concorrendo com a portuguesa, católica, estatal e burocrática. É justamente em torno desse conflito que se move o historiador Evaldo Cabral de Melo, um dos maiores especialistas no assunto ocupação holandesa.
Ao contrário de Paul Johnson, que entra no quarto de Napoleão e Josefina para explicar o comportamento do general na guerra, Cabral de Melo deixa a vida privada de Nassau para outro historiador. Solteiro, amante da pintura e da arquitetura, o nobre humanista não desperta a mesma atração de, por exemplo, D. Pedro I, outro biografado da série, mulherengo e casca grossa. A historiadora Isabel Lustosa, autora de Insultos Impressos (Companhia das Letras), retrata o imperador com traços expressionistas. O título da biografia, D. Pedro I, Um Herói sem Nenhum Caráter, define sua filiação andradiana ao identificar o imperador com o malandro Macunaíma.
Ao contrário dos livros da história oficial, o imperador é reduzido à condição de governante medíocre, que fazia vista grossa à corrupção - não é familiar? - e tratava suas muitas mulheres de modo rude. É claro que a autora não esquece o papel de Pedro I como forjador do futuro do país, mas lembra que, desde pequeno, já esboçava uma personalidade tirânica e contraditória.
A biografia do imperador aproxima-se do modelo Paul Johnson no quesito ambigüidade (dos biografados, claro). A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz justifica sua admiração pela forma com que Napoleão foi retratado pelo historiador e jornalista inglês. "É uma biografia com argumento", resume, anunciando os próximos projetos da coleção, um livro sobre o artista plástico carioca Hélio Oiticica (1939-1980) escrito por Nicolau Sevcenko, outro sobre a atriz carioca Leila Diniz (1945-1972) que está nas mãos de Joaquim Ferreira dos Santos, um perfil do imperador D. Pedro II por José Murilo de Carvalho e ainda um outro sobre o marechal Rondon, a cargo do americano Todd Diacon, diretor do Departamento de História da Universidade do Tennessee.
Diacon é autor de um livro essencial para o entendimento da formação do Brasil moderno, justamente sobre a vida de Rondon. Na primeira leva de biografias da coleção Perfis Brasileiros , o papel de moderno cabe ao poeta Castro Alves, analisado pelo africanista e membro da Academia Brasileira de Letras Alberto da Costa e Silva. Não se trata de um retrato idealizado do autor de O Navio Negreiro. O acadêmico e embaixador pinta com equilíbrio a figura do republicano libertário que, com certeza, teve um papel decisivo na libertação dos escravos, mas observa que esse foi um amor à distância. O poeta pouco sabia da vida e costumes dos negros submetidos ao cativeiro. Preferia correr os bares de lábios pintados e com muito pó no rosto.
Se Castro Alves foi um dândi rebelde e com causa, Getúlio Vargas foi um homem "acossado por dúvidas existenciais", segundo a biografia escrita pelo estudioso Boris Fausto, certamente o maior especialista brasileiro na Revolução de 30. O grande desafio do autor é entender como um político provinciano chegou ao papel de ditador simpático, inclinado ao fascismo e estranhamente cultuado pela esquerda. O título da biografia, O Poder e o Sorriso, resume a figura paternalista do líder de massas que até hoje marca os políticos deste país, especialmente pela astúcia.
A despeito disso, Fausto nota que a imprensa, de modo geral, enaltece o estadista e prefere esquecer o autoritarismo e o populismo da Era Vargas. O caudilho nasceu na monarquia e deixou o Brasil republicano com um enigma para resolver. Como dizia, gostava mais de ser interpretado do que se explicar. Boris Fausto assume a tarefa, mas não é sua culpa se até hoje ninguém entende como um homem que odiava comunistas aproximou-se depois do PCB e este de seu "perseguidor implacável". Como se vê, cada biografia revela homens contraditórios, de um imperador sem classe a um poeta abolicionista que pintava a África como um cenário protohollywoodiano.
Lilia Schwarcz e o jornalista Elio Gaspari fizeram uma "lista dos sonhos", segundo a historiadora, para cruzar os personagens biografados com os autores certos. "Queríamos contrapor esses perfis inesperados ao modelo historiográfico positivista do século 19", justifica Lilia, concluindo que "só autores de muita personalidade e estilo" poderiam dar conta da missão nada fácil de escrever sobre personagens tão complexos. Não se trata de um caprichoso revisionismo, mas de tentar entender, por meio dessas vidas, como o Brasil evoluiu com tantas empreitadas destinadas ao aparente fiasco.
(O Estado de São Paulo)
Coleção Perfis Brasileiros reúne biografias pouco convencionais de políticos, escritores e artistas
Antonio Gonçalves Filho
Nos últimos três ou quatro anos o mundo foi inundado por um tsunami de biografias de Napoleão, mas só uma, ao que se tem notícia, foi parar na mesa de cabeceira do presidente George Bush: a do acadêmico Paul Johnson, único a dizer com todas as letras que o general francês foi o precursor dos ditadores modernos e dos estados totalitários. Pois foi justamente a biografia de Paul Johnson, lançada lá fora há quatro anos, que inspirou o jornalista Elio Gaspari e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz a conceber e coordenar a coleção Perfis Brasileiros, série de biografias de líderes, escritores e artistas que a Companhia das Letras coloca hoje nas livrarias de todo o País. (preços entre R$ 33 e R$ 38).
Johnson é uma figura controvertida por apoiar a política externa do presidente Bush, mas ninguém discute sua biografia de Napoleão. Ele conta com extraordinária habilidade a carreira e a vida do general francês que, no começo do século 19, levou jovens filhos de fazendeiros a morrer por uma causa injusta - a sua, de criar um império maior que a vida.
Nas quatro primeiras biografias da nova série Perfis Brasileiros não há nenhum militar ou político tão ambicioso como Napoleão, mas Maurício de Nassau bem que tentou criar no Brasil um paraíso capitalista durante a ocupação holandesa. Nassau desembarcou no Recife há 369 anos na condição de governador. Não conseguiu impor sua ideologia protestante, privatista e racionalista, concorrendo com a portuguesa, católica, estatal e burocrática. É justamente em torno desse conflito que se move o historiador Evaldo Cabral de Melo, um dos maiores especialistas no assunto ocupação holandesa.
Ao contrário de Paul Johnson, que entra no quarto de Napoleão e Josefina para explicar o comportamento do general na guerra, Cabral de Melo deixa a vida privada de Nassau para outro historiador. Solteiro, amante da pintura e da arquitetura, o nobre humanista não desperta a mesma atração de, por exemplo, D. Pedro I, outro biografado da série, mulherengo e casca grossa. A historiadora Isabel Lustosa, autora de Insultos Impressos (Companhia das Letras), retrata o imperador com traços expressionistas. O título da biografia, D. Pedro I, Um Herói sem Nenhum Caráter, define sua filiação andradiana ao identificar o imperador com o malandro Macunaíma.
Ao contrário dos livros da história oficial, o imperador é reduzido à condição de governante medíocre, que fazia vista grossa à corrupção - não é familiar? - e tratava suas muitas mulheres de modo rude. É claro que a autora não esquece o papel de Pedro I como forjador do futuro do país, mas lembra que, desde pequeno, já esboçava uma personalidade tirânica e contraditória.
A biografia do imperador aproxima-se do modelo Paul Johnson no quesito ambigüidade (dos biografados, claro). A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz justifica sua admiração pela forma com que Napoleão foi retratado pelo historiador e jornalista inglês. "É uma biografia com argumento", resume, anunciando os próximos projetos da coleção, um livro sobre o artista plástico carioca Hélio Oiticica (1939-1980) escrito por Nicolau Sevcenko, outro sobre a atriz carioca Leila Diniz (1945-1972) que está nas mãos de Joaquim Ferreira dos Santos, um perfil do imperador D. Pedro II por José Murilo de Carvalho e ainda um outro sobre o marechal Rondon, a cargo do americano Todd Diacon, diretor do Departamento de História da Universidade do Tennessee.
Diacon é autor de um livro essencial para o entendimento da formação do Brasil moderno, justamente sobre a vida de Rondon. Na primeira leva de biografias da coleção Perfis Brasileiros , o papel de moderno cabe ao poeta Castro Alves, analisado pelo africanista e membro da Academia Brasileira de Letras Alberto da Costa e Silva. Não se trata de um retrato idealizado do autor de O Navio Negreiro. O acadêmico e embaixador pinta com equilíbrio a figura do republicano libertário que, com certeza, teve um papel decisivo na libertação dos escravos, mas observa que esse foi um amor à distância. O poeta pouco sabia da vida e costumes dos negros submetidos ao cativeiro. Preferia correr os bares de lábios pintados e com muito pó no rosto.
Se Castro Alves foi um dândi rebelde e com causa, Getúlio Vargas foi um homem "acossado por dúvidas existenciais", segundo a biografia escrita pelo estudioso Boris Fausto, certamente o maior especialista brasileiro na Revolução de 30. O grande desafio do autor é entender como um político provinciano chegou ao papel de ditador simpático, inclinado ao fascismo e estranhamente cultuado pela esquerda. O título da biografia, O Poder e o Sorriso, resume a figura paternalista do líder de massas que até hoje marca os políticos deste país, especialmente pela astúcia.
A despeito disso, Fausto nota que a imprensa, de modo geral, enaltece o estadista e prefere esquecer o autoritarismo e o populismo da Era Vargas. O caudilho nasceu na monarquia e deixou o Brasil republicano com um enigma para resolver. Como dizia, gostava mais de ser interpretado do que se explicar. Boris Fausto assume a tarefa, mas não é sua culpa se até hoje ninguém entende como um homem que odiava comunistas aproximou-se depois do PCB e este de seu "perseguidor implacável". Como se vê, cada biografia revela homens contraditórios, de um imperador sem classe a um poeta abolicionista que pintava a África como um cenário protohollywoodiano.
Lilia Schwarcz e o jornalista Elio Gaspari fizeram uma "lista dos sonhos", segundo a historiadora, para cruzar os personagens biografados com os autores certos. "Queríamos contrapor esses perfis inesperados ao modelo historiográfico positivista do século 19", justifica Lilia, concluindo que "só autores de muita personalidade e estilo" poderiam dar conta da missão nada fácil de escrever sobre personagens tão complexos. Não se trata de um caprichoso revisionismo, mas de tentar entender, por meio dessas vidas, como o Brasil evoluiu com tantas empreitadas destinadas ao aparente fiasco.
(O Estado de São Paulo)
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