Book Reviews

02 abril, 2006

32) Convergência macroeconômica no Mercosul: tarefa de Sísifo?

Apresentação ao livro de
Leonardo de Almeida Carneiro Enge:
A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina: regimes alternativos e fragilidade externa
(Brasília: IRBr, 2006).

Caminhos da convergência na globalização
Paulo Roberto de Almeida

Este livro, a rigor, dispensa apresentações. Seu título e subtítulo, assim como seu índice esclarecedor, falam por si mesmos, e eles não poderiam ser mais eloqüentes. O tema, evidenciado no título, a convergência macroeconômica entre os dois grandes sócios do Mercosul, toca num dos mais importantes problemas da interface econômica externa do Brasil, ressaltado pela sua densa relação – que não é só econômica, obviamente – com a vizinha Argentina, nosso principal parceiro no empreendimento integracionista do cone sul e interlocutora incontornável e indispensável no processo de construção de um espaço econômico unificado na América do Sul. Quanto ao subtítulo, ele revela de modo muito claro o ambiente econômico frágil no qual viveram até recentemente ambos países, tendo de operar seus respectivos processos de estabilização num contexto de turbulências internas e externas, em um quadro marcado pela diversidade de regimes cambiais, para não dizer divergência recíproca absoluta, e pela deterioração dos desequilíbrios externos.
Em sua primeira “encarnação”, a de uma dissertação de mestrado no Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores, a monografia cumpriu exatamente o papel que se esperava dela, a de uma conclusão com êxito de uma curta trajetória de formação e aperfeiçoamento para a carreira diplomática. Melhor dito, ela foi além dessa missão e, por isso mesmo, conquistou o primeiro lugar dentre os prêmios previstos, ganhando, assim, um lugar de honra no ainda pequeno panteão das monografias publicadas. Com isso, ela assegurou ao seu autor um merecido estágio na Embaixada do Brasil em Buenos Aires e, por sua própria iniciativa, a oportunidade de continuar seus estudos especializados, desta vez em nível de doutoramento. Em sua presente “encarnação”, sob a forma deste livro, ela deve continuar alimentando um debate tão importante quanto necessário, uma vez que, se o que se pretende com o Mercosul é, efetivamente, conduzi-lo à sua etapa de união aduaneira acabada e daí passar a construir o mercado comum pretendido, o tema coberto pelo autor apresenta-se como central na consolidação daquilo que se poderia chamar, emprestando-se uma famosa expressão da Europa comunitária, de “acquis” mercosuliano, base da futura coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais.

Tive a satisfação intelectual – e o prazer pessoal – de “orientar” esta dissertação, mas de fato ela dispensava quaisquer orientações ou “correções”, tal o domínio que o autor demonstrou ter do tema por ele escolhido. Isto se deve, provavelmente, à excelente formação como economista que ele recebeu nas salas de aula da FEA-USP, sem esquecer de mencionar aqui uma experiência profissional prévia num mercado de trabalho altamente competitivo, como é o da cidade de São Paulo.
Leonardo Enge estava, portanto, plenamente habilitado a destrinchar a problemática por ele escolhida, a situá-la adequadamente no contexto mais vasto da globalização, a identificar os problemas correntes do relacionamento bilateral e os percalços que ainda devem ser superados com vistas a alcançar-se, se tal for possível, a esperada e tantas vezes delongada convergência macroeconômica entre as duas maiores economias da América do Sul, condição necessária, mas não suficiente, para avanços ulteriores no Mercosul e base indispensável da consolidação do processo integracionista na região. E o que traz este livro de importante para o debate e a reflexão ponderada em torno dessa questão?

A obra se compõe de quatro capítulos, que vão do geral ao particular, ou do mais vasto ao mais específico, mas que, na verdade, constituem uma espécie de crescendo, uma vez que se parte do contexto maior da globalização, para examinar em seguida seu impacto sobre a formulação e execução das políticas econômicas em âmbito nacional, o que introduz a discussão das experiências de estabilização no Brasil e na Argentina e abre espaço para o exame conclusivo das bases da integração Brasil-Argentina, isto é, da própria convergência macroeconômica. O subtítulo traduz exatamente o que estava em causa nessas experiências: regimes alternativos (de câmbio) – ou seja, de um lado o Plano de Conversibilidade, de outro o Plano Real – e fragilidade externa, isto é, o ambiente de turbulências financeiras em que ambos os países viveram, tanto de origem externa, como aquelas criadas pelos seus próprios desequilíbrios internos e externos. O fato é que, longe de “convergirem” para um leque de respostas de políticas econômicas coordenadas entre si, cada país concebeu e adotou a solução que melhor parecia adequada às autoridades econômicas nacionais, nos momentos cruciais dos respectivos processos de estabilização econômica, daí derivando diferenças fundamentais na implementação prática desses processos que complicaram ainda mais a busca da convergência, num quadro que era igualmente marcado pelas fragilidades externas, em termos de balanço de pagamentos, e pelos impasses internos em torno das políticas monetárias e cambiais.
Ainda que o próprio autor exclua esta intenção, esta é a história linear, tal como efetivamente se passou na “vida” dos dois países – wie es eigentlich gewesen, diria o historiador alemão Leopold Von Ranke –, da “divergência” econômica entre o Brasil e a Argentina, ao longo de mais de quinze anos desde a redemocratização de meados da década de oitenta. Se não fosse pela excelência, também, da análise econômica, esta monografia teórica – como sublinhado pelo autor – já constituíria, nos seus próprios termos, um belo racconto storico da evolução econômica no cone sul a partir do ínício dos anos noventa do século passado. Mas ela vai além disso, ao acoplar à história desses episódios memoráveis da “crônica econômica contemporânea” dos dois países uma discussão pertinente, e percuciente, dos mais importantes problemas envolvidos, segundo uma dimensão própria a cada um deles, na concepção, formatação legal e na aplicação das políticas econômicas nacionais em condições de forte tensão política e social interna e de grandes pressões externas.

E por que a convergência macroeconômica seria relevante na vida econômica dos dois países e no itinerário futuro do Mercosul? Alguns, talvez por impulsos idealistas ou mesmo por um desejo inconsciente de mimetizar o processo europeu, pretendem que essa convergência é importante para acelerar a chegada da “moeda comum” no Mercosul, como se todas as experiências integracionistas devessem, inevitável ou necessariamente, seja reproduzir o modelo comunitário da UE, seja desembocar fatalisticamente na adoção de uma moeda única, vista como o nec plus ultra das integrações possíveis. A despeito do apelo “popular” que possa ter essa visão, devemos descartá-la de imediato. Não se opera “convergência” apenas para fins da adoção de um mesmo padrão monetário, ainda que a conseqüência lógica de todo mercado comum acabado possa ser, de fato, a abolição desse incômodo que representa o câmbio entre moedas nas fronteiras e a imposição continuada desses pesados custos de transação que já não mais possuem razão de continuar a existir, quando completou-se a liberalização de bens, serviços e fatores produtivos entre dois ou mais países. Brasil e Argentina, e talvez mesmo o Mercosul, chegarão, eventualmente, em algum momento de um futuro ainda imprevisível, a uma moeda comum, mas isso se dará pelo aprofundamento natural e pelo adensamento progressivo dos vínculos recíprocos construídos no processo de integração bilateral e plurilateral – envolvendo ainda a América do Sul –, não tanto pela definição de um projeto político que tenha de ser implementado de cima para baixo pela simples vontade de dirigentes ou tecnocratas.
A convergência macroeconômica entre o Brasil e a Argentina é, ou pelo menos deveria ser, importante em seus próprios termos, não apenas como um dos precedentes indispensáveis ao estabelecimento de uma moeda comum bilateral (a ser oportunamente “quatrilateralizada” no Mercosul, se tal for possível, tendo em vista as peculiaridades do Uruguai como praça financeira aberta). Mesmo que não se conceba essa iniciativa apenas como uma espécie de “camisa de força” a limitar ações intempestivas, por parte de líderes políticos ou mesmo de burocracias governamentais eventualmente volúveis, no sentido de alimentar o caráter já naturalmente errático das políticas econômicas nas condições conhecidas na América Latina nas últimas décadas, mesmo que não fosse para evitar esse tipo de “volatilidade macroeconômica” embutida na instabilidade geral dos ciclos eleitorais nesses países, a convergência macroeconômica apresentaria, por si só, um elemento novo na densa relação econômica já construída entre o Brasil e a Argentina. Esse elemento é, obviamente, o da estabilidade e da previsibilidade de regras, a condição primeira e essencial de todo processo sustentado de crescimento econômico (a segunda sendo, em minha opinião, uma microeconomia competitiva, e a terceira uma abertura ao comércio e aos investimentos internacionais, sem olvidar, obviamente, a qualidade dos recursos humanos e uma infra-estrutura adequada).
De fato, a convergência não é uma “situação” a que se chegue, como seria um eventual ingresso em um “estado de graça” de tipo econômico. Trata-se mais bem de um processo, de um work in progress, que requer das autoridades econômicas envolvidas mais do que atividades rotineiras de troca de informações, consulta e coordenação de medidas tópicas no campo macroeconômico. O processo gradual de que se fala requer, em primeiro lugar, uma concepção clara do tipo de ordenamento econômico que se pretende em países que estão inevitavelmente inseridos na interdependência econômica global, como demonstrado amplamente neste trabalho. Ele demanda, em segundo lugar, uma definição das condições sob as quais os países devem operar internamente e administrar no plano externo essa inserção econômica internacional, o que também é discutido neste livro. Ele está, em terceiro lugar, condicionado à existência de instituições técnicas específicas, ou pelo menos de mecanismos e “ferramentas” adequadas e adaptadas a esse tipo de gestão econômica, que se aproximam daquilo que os anglo-saxões chamam de fine-tuning. As tarefas não são simples, tendo em vista a instabilidade macroeconômica que marcou ambos países nas duas últimas décadas do século XX e a delicada gestão da estabilidade alcançada – mas ainda não totalmente garantida – nos primeiros anos desta década.
Com base num estudo empiricamente sustentado nessas experiências dos últimos lustros, mas também teoricamente embasado na melhor ciência econômica, o autor conclui que o conjunto ideal de políticas para a promoção da convergência macroeconômica entre Brasil e Argentina deveria estar fundamentado no tripé câmbio flexível, metas de inflação e austeridade fiscal. Como diz Leonardo Enge, essa combinação de políticas é a mais adequada para a promoção do crescimento econômico, a atração de investimentos diretos estrangeiros e redução da fragilidade externa no Brasil e na Argentina.
Por acaso, esse tipo de receituário se aproxima do “coquetel” macroeconômico em utilização atualmente no Brasil, mas ele ainda não está suficientemente consolidado e costuma sofrer ataques, tanto à direita, quanto à esquerda do espectro político-acadêmico-tecnocrático que costuma opinar sobre políticas econômicas no Brasil. Existe ainda, como já salientado por diversos observadores que acompanham esse tipo de debate, uma enorme demanda por “magia econômica”, bem como por intervencionismo estatal em determinados mercados e setores.
São vários os efeitos desse tipo de demanda, mas eles costumam se manifestar em ataques simultâneos (nem sempre coincidentes ou todos concordantes): (a) contra a rigidez das metas de inflação, insuscetíveis de acomodar, conforme se lê, determinados choques externos de preços, como no caso do petróleo, pressionado por uma demanda muito próxima da oferta; (b) contra a política de flutuação do câmbio, que limitaria, como apregoado frequentemente, intervenções mais focadas do Banco Central na determinação de uma “taxa de equilíbrio”, que ninguém ainda conseguiu dizer qual seria; (c) ou, ainda, contra o próprio conceito de responsabilidade fiscal, que os mais afoitos querem ver substituído por um etéreo compromisso com o crescimento e o emprego e por um ainda mais vago conceito de “responsabilidade social”, sem falar nos que pretendem a redução do superávit primário em nome de investimentos “sociais”, como se o déficit nominal já não fosse suficientemente alto.

Mas quando se fala em convergência se está pensando, obviamente, numa relação envolvendo pelo menos dois atores, quando não num processo bem mais amplo, com número maior de países, apontando para a confluência de políticas comuns, se não totalmente harmônicas, ao menos concordantes, como tem ocorrido, por exemplo, desde longos anos, no seio da União Européia e, de forma mais diluída, no âmbito da OCDE. O fato de Brasil e Argentina cogitarem, e de certa forma estabelecerem como objetivo, essa convergência, como estabelecido, por exemplo, no artigo 1º do Tratado de Assunção – ainda que sem mecanismos definidos de implementação – já constitui um fator, ou pelo menos uma promessa, de futura estabilidade de regras, a primeira das nossas condições primárias para um processo sustentado de crescimento econômico.
Se uma convergência relativa era sustentada, no regime de Bretton Woods, pela adesão formal ao princípio da estabilidade cambial, essa tarefa tem de ser cumprida, no não-regime monetário que passou a existir no mundo “pós-Bretton Woods”, pela adesão informal a um conjunto de regras e princípios aos quais os países prometem se ater voluntariamente como forma de reduzir a volatilidade intrínseca aos regimes de flutuação cambial. Uma das modalidades encontradas, no caso da experiência monetária européia – que existiu independentemente de acordos formais de integração, já que também o franco suiço, por exemplo, fazia parte de um sistema de flutuação ancorado no antigo deutsche mark –, foi a definição de uma banda ajustável, mas bastante estreita, ligando as moedas integrando esse regime, com acertos de intervenções recíprocas entre bancos centrais para garantir a fiabilidade do sistema. Mas mesmo esse tipo de arranjo informal, que poderia ser concebido para outras experiências similares em outros continentes, tornou-se na prática inviável em virtude da magnitude dos fluxos de capitais e da diversidade de ativos à disposição dos agentes nas atuais condições da globalização financeira. O sistema monetário europeu saltou pelos ares quando confrontado com os enormes deslocamentos provocados por uma alta dos juros no principal operador do regime, algo que pode – e tende – freqüentemente a ocorrer.

Qual a solução para o Brasil e a Argentina? Acredito que este trabalho fornece o essencial das respostas e elas já foram resumidas nos parágrafos precedentes. Vale a pena ler atentamente o que Leonardo Enge tem a dizer sobre a experiência dos dois países, no contexto das crises financeiras da segunda metade dos anos noventa, em especial a da Argentina, no início desta década. A convergência macroeconômica entre os dois países é, por certo, bem vinda e mesmo necessária, mas ela requer condições mínimas para ser bem sucedida e abrir o caminho para o tão desejado processo sustentado de crescimento, com baixas taxas de inflação, reduzida volatilidade intrínseca na interface interna e externa do meio ambiente de negócios e uma boa inserção internacional das duas economias. Entre essas condições, necessárias mas certamente não suficientes, estão o conjunto de políticas preconizadas por economistas experientes e que foram pelo autor aqui explicitadas: câmbio flexível, metas de inflação e austeridade fiscal.
Nessa perspectiva, cada um dos dois países deve avançar muito ainda no caminho da consolidação de seus respectivos processos de estabilização macroeconômica antes de se pensar no estabelecimento de mecanismos formais – no âmbito bilateral ou mesmo “mercosuliano” – de coordenação das políticas macroeconômicas, que constituem a base instrumental da desejada convergência. O Mercosul pode até ser importante, ou até mesmo essencial, nesse processo, mas ele não é necessariamente indispensável, uma vez que o mais relevante é a tomada de consciência, interna, pelos dirigentes econômicos e pelos líderes políticos, de que a escolha das políticas ideais envolve elevado sentido de responsabilidade e um compromisso muito forte com a estabilidade e a previsibilidade das regras.
O Brasil e a Argentina já perderam muito tempo, no decorrer do século XX, no caminho do crescimento econômico e da busca de bem-estar para seus povos respectivos. Nos percalços econômicos registrados e nas muitas frustrações sociais acumuladas, ao longo das últimas décadas, ambos países, de comum acordo, decidiram privilegiar o Mercosul como um instrumento válido de progresso econômico e social, bem como para sua capacitação com vistas a lograr uma melhor inserção econômica internacional. Pois bem, o Mercosul constituiu, desde 2000, um conjunto de diretrizes de procedimento para realizar o objetivo almejado da convergência macroeconômica. As diretrizes são válidas e plenamente adaptadas aos requerimentos estabelecidos para realizar esse processo de convergência, como reconhece o autor deste trabalho, ao cabo de um circunstanciado exame teórico e empiricamente embasado do percurso do Mercosul, no decorrer de mais de uma década. Se os resultados alcançados até aqui não estão em conformidade com os objetivos esperados do itinerário integracionista, não é por alguma falha intrínseca de qualquer uma das diretrizes estabelecidas e sim por deficiências próprias aos dois países, ou seja, pela não implementação do “mix ideal” de políticas econômicas. As regras estão dadas. Cabe persistir no intento, de maneira responsável e serena, que os resultados virão.
A visão clara desse processo, por parte de Leonardo Enge, como revelada neste trabalho, nos permite ostentar uma tal tranqüilidade quanto ao atingimento oportuno dos objetivos de maximização do bem-estar e de progresso econômico e social, fixados na inauguração do Mercosul. Brasil e Argentina ainda têm um longo itinerário a percorrer para que eles sejam alcançados, mas o conhecimento adequado do caminho já cumprido permite constatar os erros cometidos e a serem agora evitados, bem como as tarefas que ainda devem ser empreendidas para a consecução daquelas metas. Uma obra como esta constitui uma espécie de “manual de bordo” da história realizada até aqui, ao mesmo tempo que um “manual de instruções” – uma espécie de how to do – da agenda que tem de ser cumprida por dirigentes responsáveis e engajados nesse processo. Auguro pleno sucesso acadêmico e no espaço público para este primeiro livro de meu colega diplomata Leonardo Enge: tenho certeza de que ele contribuirá para o debate bem informado e, mais do que isto, para a orientação de políticas públicas condizentes com as necessidades dos países membros do Mercosul.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de março de 2006.

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