Book Reviews

14 março, 2006

19) O maior assassino de todos os tempos...



Livros: A confraria dos assassinos
Com base em arquivos secretos recentemente abertos, duas obras mostram por dentro a corte de Stalin
Jerônimo Teixeira
Veja, Edição 1947 - 15 de março de 2006


Uma piada soviética do fim dos anos 40 contava que, certa vez, o ditador Josef Stalin perdeu seu cachimbo favorito. Alguns dias depois, Lavrenti Beria – o chefe da polícia secreta que às vezes torturava pessoalmente seus prisioneiros para fazê-los admitir crimes que não cometeram – perguntou sobre o cachimbo sumido. "Já o encontrei. Estava embaixo do sofá", disse Stalin. "Não é possível!", replicou Beria. "Três pessoas já confessaram esse crime." O próprio Stalin costumava contar essa piada para seus colaboradores próximos – e todos riam. Esse monstruoso cinismo dos círculos mais elevados da tirania comunista ganha um retrato vigoroso em dois livros: Stalin – A Corte do Czar Vermelho (tradução de Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; 864 páginas; 69 reais), do historiador inglês Simon Sebag Montefiore, e Um Stalin Desconhecido (tradução de Clóvis Marques; Record; 448 páginas; 53,90 reais), dos historiadores georgianos Roy e Zhores Medvedev.

Os dois livros estão entre os primeiros a valer-se da abertura de arquivos que permaneciam secretos até o colapso da União Soviética. Com base em cartas, bilhetes e documentos inéditos, traçam um retrato íntimo do stalinismo. Montefiore conta sua história de forma seqüencial, da consagração de Stalin como líder supremo em 1929 à sua morte, em 1953. O livro dos Medvedev – dois irmãos gêmeos que, nos anos 70, se tornaram dissidentes soviéticos – é uma coletânea de ensaios sobre temas mais especializados: a corrida atômica, o expurgo do líder comunista Bukharin, o obscurantismo na ciência soviética. De certo modo, as duas obras são complementares: dão ao leitor uma visada interna do exclusivo clube bolchevique – um pequeno grupo de mandantes que exerciam poder de vida e morte sobre regiões inteiras.

Os líderes revolucionários eram todos vizinhos em apartamentos no Kremlin e também costumavam passar as férias juntos. Até pelo menos o início dos anos 30, adotavam um estilo austero, vivendo de magros estipêndios do partido. Nos últimos anos de Stalin, porém, as reuniões do grupo dirigente começavam em sessões de cinema (às vezes com um bangue-bangue americano) e estendiam-se em madrugadas alcoólicas nas dachas (casas de campo). Apesar da proximidade familiar desses bolcheviques e de sua absoluta identidade ideológica – todos, afinal, acreditavam que estavam heroicamente moldando uma nova sociedade e um novo homem –, o clima entre eles nunca foi de camaradagem. Stalin erigiu a paranóia como princípio de governo: qualquer aliança era circunstancial, e todos desconfiavam de todos. Muitos foram os nomes aventados como herdeiros de Stalin que, mais tarde, caíram no ostracismo: o sinistro Beria; Molotov, o ministro do Exterior que negociou um pacto com os nazistas; Jdanov, o intelectual que moldou as diretrizes do "realismo socialista" impostas a todo artista soviético. Esses três tiveram a sorte de ser escanteados por Stalin – e não assassinados (Beria seria, sim, executado, mas já no governo Kruschev). Vários figurões foram consumidos pela autofagia do sistema comunista: Bukharin, Kamenev, Zinoviev, Sergo, Iejov, Iagoda – e, é claro, Trotsky, o mais brilhante opositor de Stalin, assassinado em seu exílio no México, em 1940, em uma operação arquitetada por Beria. A partir de 1937, no auge do Terror stalinista, já nem importava estabelecer quem era amigo ou inimigo do ditador: Stalin, Beria e seus asseclas estabeleciam cotas para cada região, com um número mínimo de execuções a ser realizadas. Entre expurgos, assassinatos e vítimas da fome produzida pela coletivização forçada do campo, calcula-se que os mortos pelo stalinismo estejam em torno de 20 milhões.

O mais assustador era a fidelidade que o stalinismo (termo cunhado por Kaganovich, um dos mais pusilânimes manda-chuvas bolcheviques) inspirava até em suas vítimas. "Sigam Stalin", disse Kamenev aos filhos, depois do julgamento em que foi condenado à morte por acusações falsas. Mas essa lealdade sobrenatural tinha limites: no primeiro ensaio de Um Stalin Desconhecido, Zhores Medvedev examina a hipótese de que Stalin não teria morrido de um derrame, mas sim de envenenamento (Beria, aliás, costumava envenenar inimigos). O historiador conclui que não existe nenhum indício concreto de assassinato – mas que essa não é uma idéia implausível: entre os potentados comunistas, o sentimento diante da morte de Stalin foi de alívio. Muitos anos depois, Molotov, já retirado da vida política, resumiria de forma enigmática a ambivalência da figura de Stalin, como guia carismático e assassino de massas. Em conversa com um jornalista, o ex-ministro do Exterior contou um sonho recorrente de sua velhice: "Estou numa cidade destruída e não consigo encontrar a saída. Depois, encontro Stalin".



Conspirações no Kremlin

Em 1949, o aniversário do ditador soviético Josef Stalin reuniu os comunistas que sobreviveram aos expurgos costumeiros na cúpula do partido. Abaixo, alguns desses sobreviventes políticos

Viatcheslav Molotov : ministro do Exterior, negociou um pacto de não-agressão com os nazistas. Depois da guerra, seu prestígio entrou em baixa. Sua mulher, Polina, foi presa em 1949, em uma onda de perseguições anti-semitas

Lazar Kaganovich : de família judaica, era um político enérgico, mas cauteloso. Inimigo de Molotov, contava com Stalin para proteger-se das perseguições anti-semitas

Lavrenti Beria : foi o operador dos expurgos e execuções dos anos 30. Gostava de torturar pessoalmente seus inimigos

Georgi Malenkov : era considerado o grande aliado de Beria. Depois da morte de Stalin, porém, ele se aliou ao futuro líder Kruschev e traiu o companheiro, que foi preso e executado

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Trechos de dois livros:
Um Stalin Desconhecido
Stalin – A Corte do Czar Vermelho


Trecho do livro Um Stalin Desconhecido, de Roy e Zhores Medvedev

O testamento de Stalin

Ao longo dos anos, Stalin eliminou vários membros de sua entourage que não considerava à altura como possíveis sucessores. Os historiadores conhecem bem seus nomes. Mas Stalin certamente contava com certos dirigentes de Estado e do Partido para manter o culto a sua personalidade e preservar sua criação, o império soviético, embora não possamos ter certeza quanto às suas identidades.

Lenin avaliou as qualidades políticas e pessoais de seus discípulos e companheiros mais próximos num documento redigido durante o período final de sua doença, que passou a ser conhecido como seu "testamento político", mas não teve oportunidade de recomendar que uma pessoa desse grupo fosse feita o novo líder do Partido. A intenção era que o "testamento" de Lenin fosse levado em consideração num futuro Congresso do Partido e não no ambiente mais restrito de uma reunião do Comitê Central. Com toda certeza, ele não tinha urgência em designar um sucessor, pois durante todo o ano de 1923 já não dirigia instituições de Estado ou do Partido, motivo pelo qual não parecia haver necessidade de uma reorganização imediata após sua morte. O que aconteceu afinal foi que a elite do Partido gradualmente projetou um novo líder, com base em seu programa político; as políticas a serem adotadas eram consideradas mais importantes que quaisquer considerações de lealdade à revolução, proximidade de Lenin ou especial capacitação pessoal. Se os chefes do partido estivessem empenhados na expansão internacional da revolução ou no triunfo do marxismo em amplas regiões da Europa e da Ásia, e não apenas na Rússia, Trotsky certamente se teria tornado o líder. Mas a elite do Partido queria estabilidade e se preocupava sobretudo com a construção do socialismo no único país em que efetivamente detinha o poder.

Como Stalin era aquele que personificava esta política no seu grau máximo, é ilusório considerá-lo um usurpador. Ele levou vários anos para ascender ao papel de ditador, de 1923 ao fim de 1929. Foi capaz de ampliar seus poderes no contexto de um processo de conquista de autoridade pessoal e instituição de um "culto da personalidade". Lenin fora um líder, mais que um ditador, um líder cujo poder repousava nessa brilhante qualidade que é a marca do "gênio político", a autoridade. Sua grandeza "incorporava" o gênio de Marx, e sua grande realização não foi apenas a captura do poder na Rússia; foi também uma virada na história da humanidade, o início de uma nova era histórica, tal como prevista nos ensinamentos de Marx. A fonte do poder de Lenin estava no papel de liderança que desempenhou na Revolução de Outubro, em sua crucial contribuição para sua estratégia e organização.

Depois da morte de Lenin, Stalin pode ter-se tornado o "primeiro entre iguais", mas de forma alguma estava já no comando, em grande parte porque ainda não tinha a seu crédito qualquer grande realização "histórica". A Nova Política Econômica (NEP) da década de 1920 conquistou popularidade e teve grande êxito. Mas a melhora do padrão de vida e do desenvolvimento econômico ocorreu espontaneamente, no contexto de um mercado capitalista e da lei de oferta e procura, mais do que como resultado de uma economia planejada com base em princípios socialistas. Stalin só se tornaria verdadeiramente o "chefão" do país após o início da nova "revolução de cima para baixo" — a coletivização da agricultura (1929-31), o encerramento da NEP e a introdução do primeiro Plano Qüinqüenal para a industrialização socialista. Depois da vitória sobre a Alemanha em 1945, o líder da União Soviética tornou-se também o chefe de um inédito império soviético, um vasto bloco de países socialistas que iam de Berlim a Hanói. A esta altura, todavia, não havia uma única pessoa realmente convincente, talentosa ou bem formada entre os "fiéis camaradas" da entourage de Stalin. Envelhecendo e sem dúvida percebendo que o fim se aproximava — ele falava a respeito com freqüência cada vez maior —, Stalin não pôde seguir o exemplo de Lenin, preparando uma detalhada avaliação das qualidades positivas e negativas de seus subordinados mais próximos, para ser lida num congresso póstumo do Partido. Nenhum dos quatro líderes do Partido que em 1952 estavam mais próximos de Stalin — Malenkov, Beria, Kruchev e Bulganin — podia ser considerado acima da média. Sua autoridade decorria do fato de estarem próximos de Stalin, e não de seu talento pessoal. Assim, se Stalin quisesse deixar um testamento político, não teria podido designar os marxistas-leninistas mais eruditos do Birô Político, pois não havia nada parecido nesse organismo de elite. Tanto nas fileiras do Partido quanto em amplos setores da população, Molotov ainda era considerado o sucessor mais provável de Stalin. Mas poucos tinham consciência do fato de que Molotov perdera sua antiga influência, de que já não desempenhava mais um papel importante no Partido nem tinha qualquer função significativa no aparato governamental. Tampouco era do conhecimento geral que a mulher de Molotov, Polina Jemchujina, havia sido detida no início de 1949, acusada de "ligações com o sionismo" e "traição da Mãe Pátria". A demissão de Molotov do cargo de ministro de Relações Exteriores em 1949 marcou o início de sua "desgraça".

Sem contar com óbvio sucessor, Stalin certamente sabia que, ao contrário do que se havia verificado no momento da morte de Lenin, sua ausência deixaria o país nas mãos de uma "liderança coletiva" consideravelmente menos estável. Em 1924, os conflitos entre os companheiros mais próximos do líder falecido baseavam-se em grande medida em autênticas discordâncias políticas. No círculo mais próximo de Stalin, contudo, não havia divergências políticas; importava apenas a busca de poder e influência num contexto de rivalidades pessoais que o próprio Stalin sempre havia estimulado.

Mas o problema da sucessão adquiria urgência cada vez maior. Em 1950, realizaram-se apenas seis reuniões formais do Birô Político; em 1951, cinco; e em 1952, apenas quatro. Stalin passava cada vez mais tempo no sul, para repousar e se tratar. Em 1949, passou três meses no sul, morando em diferentes dachas; em 1950, passaram-se cinco meses, do início de agosto até o fim de dezembro, sem que ele aparecesse em seu gabinete no Kremlin. Em 1951, sua ausência, que teve início no dia 9 de agosto, foi estendida a um total de seis meses, chegando ao fim apenas no dia 12 de fevereiro de 1952.1

Em junho de 1952, Stalin comunicou abruptamente aos camaradas a decisão de convocar o 19º Congresso do Partido no outono. De acordo com o estatuto do Partido, os congressos deviam realizar-se de três em três anos, mas apesar do fato de que nenhuma reunião havia sido convocada desde 1939, o anúncio de Stalin apanhou de surpresa os outros líderes do Partido. O congresso foi marcado para outubro. De acordo com as memórias de Kruchev, depois de anunciar sua decisão de promover o congresso, Stalin calou-se sobre a eventual pauta ou sua possível intenção de apresentar um relatório geral.2 Era evidente que ele teria dificuldade de falar durante várias horas, mas para os demais era crucial saber exatamente a quem seria atribuído este papel. Havia, naturalmente, a possibilidade de que Stalin redigisse o relatório e o mandasse imprimir e distribuir entre os delegados, mas no fim ele optou por uma solução diferente. Malenkov foi instruído a preparar o relatório geral, ao passo que Kruchev falaria sobre mudanças nas regras partidárias; a Kaganovich foi confiada a tarefa de delinear as propostas do Birô Político para uma revisão do programa partidário; Mikhail Saburov, presidente do Gosplan e último orador, faria um apanhado do novo Plano Qüinqüenal.

Pouco antes da abertura do congresso, o Pravda publicou vários artigos de Stalin sob o título geral de "Problemas econômicos do socialismo". Os artigos destinavam-se a servir de base para um novo manual sobre a economia política do socialismo. Em vista da impossibilidade de Stalin de apresentar oralmente as propostas, os observadores mais atentos passaram a encarar esse congresso como um momento simbólico, em certo sentido seu legado final. Os artigos sobre a economia do socialismo foram declarados um projeto programático para a construção do comunismo. Presumia-se que a escolha dos principais oradores refletiria os papéis que passariam a desempenhar na liderança no futuro imediato. A liderança geral do Partido seria confiada a Malenkov. Kruchev supervisionaria o trabalho organizacional do aparato do Partido. Kaganovich, o velho revolucionário que estivera ao lado de Lenin, simbolizava a continuidade das metas centrais do Partido. Embora em 1952 ainda não fosse membro do Comitê Central, Saburov era o representante dos novos tecnocratas do governo.

Todo mundo certamente sabia que Stalin estava por trás de cada um dos quatro relatórios apresentados no congresso. Os textos haviam sido preparados por comissões especiais, sendo em seguida conferidos e amplamente modificados por Stalin, ao passo que os oradores propriamente ditos deram uma contribuição muito menor. Como acontecera em todos os congressos anteriores, a escolha dos membros do Comitê Central era de vital importância. O número de membros do Partido na URSS havia duplicado desde o 18º Congresso do Partido em 1939, e somava agora quase sete milhões de pessoas. Da mesma forma, o tamanho do Comitê Central foi aumentado para 125 membros e 111 candidatos. Em obediência à proposta de Stalin, o nome do Partido foi mudado de "Partido dos Bolcheviques" para "Partido Comunista da União Soviética". O novo estatuto alterava a estrutura dos órgãos do Partido, vindo um Presidium do Comitê Central substituir o tradicional Birô Político. Nem seu tamanho nem sua composição haviam sido objeto de debate antes da reunião do congresso, e ninguém imaginava que essas mudanças, que aparentemente não passavam de uma questão do protocolo, ocultavam planos secretos de Stalin de promover uma radical remodelação da liderança. Era evidente que Stalin decidira aplicar pessoalmente seu testamento político. Sua intenção era projetar novos nomes no palco nacional e internacional, gente que preservasse e promovesse o culto stalinista da mesma maneira que ele próprio havia cultivado o culto de Lenin. Embora seus desígnios ainda estivessem disfarçados, ele estava decidido a se assegurar de que "a grande época de Stalin" preservaria seu lugar na história.

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Trecho do livro Stalin – A Corte do Czar Vermelho, de Roy e Zhores Medvedev

Stálin nasceu com o segundo e o terceiro dedo do pé esquerdo grudados. Ficou com o rosto marcado por um ataque de varíola e, mais tarde, machucou o braço esquerdo, provavelmente num acidente de carruagem. Tornou-se um jovem pálido, atarracado e carrancudo, com olhos cor de mel e grossos cabelos pretos — um kinto, um garoto de rua georgiano. Tinha uma inteligência excepcional e uma mãe ambiciosa que desejava que ele se tornasse padre, talvez como seu verdadeiro pai. Mais tarde, Stálin jactava-se de ter aprendido a ler aos cinco anos escutando o padre Tcharkviani ensinar o alfabeto. Com essa idade, também ajudava a filha de treze anos do padre na leitura.

Em 1888, entrou para a escola dominical de Gori e, em 1894, ganhou uma "bolsa de estudos de cinco rublos" para o seminário de Tiflis, na capital da Geórgia. Stálin contou depois a um confidente: "Meu pai descobriu que junto com a bolsa eu também ganhava dinheiro (cinco rublos por mês) para cantar no coro [...] e uma vez, ao sair, eu o encontrei.

‘Meu jovem’, disse Beso, você esqueceu seu pai [...]. Dê-me pelo menos três rublos, não seja ruim como sua mãe!’

‘Não grite!’, respondeu Soso. ‘Se você não for embora imediatamente, vou chamar o guarda!’" Beso retirou-se de maneira furtiva. Ele foi morto numa briga por volta de 1910.

Às vezes, Stálin mandava dinheiro para ajudar a mãe, mas a partir de então manteve distância dela, cujo humor sarcástico e disciplina rígida se pareciam com os dele. Escreveu-se muita psicologia rasteira sobre a infância de Stálin, mas do que podemos ter certeza é que cresceu numa família pobre e influenciada por padres, vítima de violência, insegurança e suspeita, porém inspirada pelas tradições locais de dogmatismo religioso, rixas entre famílias e banditismo romântico. "Stálin não gostava de falar sobre seus pais e sua infância", mas não faz sentido exagerar em sua análise psicológica. Era emocionalmente atrofiado e carecia de compaixão, mas suas antenas eram super-sensíveis. Era anormal, mas o próprio Stálin compreendia que os políticos raramente são normais: a História, escreveu mais tarde, está cheia de "gente anormal".



O seminário proporcionou-lhe sua única educação formal. O ensino catequético e os "métodos jesuítas" de vigilância, espionagem, invasão da vida interior, a violação dos sentimentos das pessoas causavam repulsa em Stálin, mas o influenciaram tanto que ele passou o resto de sua vida refinando seus estilos e métodos. A escola estimulou sua paixão autodidata pela leitura, mas ele se tornou ateu no primeiro ano. "Fiz alguns amigos", disse ele, "e um debate acirrado começou entre os crentes e nós!" Logo abraçou o marxismo.

Em 1899, foi expulso do seminário, entrou para o Partido dos Trabalhadores Social-Democratas da Rússia e se tornou um revolucionário profissional, adotando o nome de guerra Koba, inspirado pelo herói do romance O parricida, de Alexander Kazbegi, um fora-da-lei caucasiano arrojado e vingativo. Ele combinava a "ciência" do marxismo com sua imaginação transbordante: escreveu poesias românticas, publicadas em georgiano, antes de trabalhar como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tiflis, o único emprego que teve antes de se tornar um dos governantes da Rússia, em 1917.

"Koba" estava convencido da panacéia universal do marxismo, "um sistema filosófico" que se adequava à totalidade obsessiva de seu caráter. A luta de classes combinava com sua belicosidade melodramática. O sigilo paranóico da intolerante e idiossincrática cultura bolchevique também se ajustava a sua confiança auto-suficiente e seu talento para a intriga. Koba mergulhou nos subterrâneos da política revolucionária, que era uma mistura fervilhante e estimulante de intriga conspiratória, bizantinismo ideológico, educação acadêmica, disputas entre facções, casos amorosos entre revolucionários, infiltração da polícia e caos organizacional. Esses revolucionários provinham de todas as partes — eram russos, armênios, georgianos, judeus, trabalhadores, aristocratas, intelectuais e doidivanas — e organizavam greves, tipografias, reuniões e "expropriações". Unidos no estudo obsessivo da literatura marxista, havia sempre uma divisão entre os emigrados burgueses cultos, como o próprio Lênin, e os homens rudes de ação na Rússia. A vida na clandestinidade, sempre itinerante e perigosa, foi a experiência de formação não somente de Stálin, mas de todos os seus camaradas. Isso explica muito do que aconteceu depois.

Em 1902, Koba ganhou fama com sua primeira prisão e o exílio na Sibéria, o primeiro de uma lista de sete, dos quais escapou seis vezes. Esses exílios estavam longe da brutalidade dos campos de concentração de Stálin: os czares eram policiais ineptos. Constituíam quase umas férias de leitura em distantes aldeias siberianas, com apenas um gendarme de plantão em tempo parcial, durante as quais os revolucionários vinham a se conhecer (e odiar), se correspondiam com seus camaradas em Petersburgo ou Viena, discutiam questões abstrusas do materialismo dialético e tinham casos com as garotas locais. Quando o chamado da liberdade ou da revolução se tornava urgente, eles fugiam, atravessando a taiga até o trem mais próximo. No exílio, os dentes de Koba, uma fonte de dor durante toda a sua vida, começaram a se deteriorar.

Koba apoiou sofregamente Vladímir Lênin e sua obra seminal, Que fazer?. Esse gênio político dominador combinava as lições práticas maquiavélicas sobre a tomada do poder com o domínio da ideologia marxista. Explorando o cisma que levaria à criação de seu Partido Bolchevista, a mensagem de Lênin era a de que um partido supremo de revolucionários profissionais podia tomar o poder para os trabalhadores e depois governar em nome deles, numa "ditadura do proletariado" até que isso não fosse mais necessário porque o socialismo fora alcançado. A visão leninista do partido como "o destacamento avançado" do "exército dos proletários [...], um grupo de luta de líderes", estabeleceu o tom militarista do bolchevismo.

Em 1904, ao voltar a Tiflis, Koba conheceu seu futuro sogro, Serguei Allilúiev, doze anos mais velho do que ele, um hábil eletricista russo casado com Olga Fedorenko, uma beldade georgiana/alemã/cigana enérgica, com uma queda por casos amorosos com revolucionários, poloneses, húngaros e até turcos. Correram rumores de que Olga teve um caso com o jovem Stálin, que seria o pai de sua futura esposa Nádia. Isso é falso, pois Nadejda já estava com três anos quando seus pais conheceram Koba, mas seu caso com Olga é bem verossímil e ele mesmo pode ter sugerido isso. Olga, de acordo com sua neta Svetlana, tinha um "fraco por homens meridionais", dizendo que os "russos são grosseirões", e sempre foi carinhosa com Stálin. Seu casamento era complicado. Diz a lenda familiar que Pável, o irmão mais velho de Nádia, viu a mãe cortejar Koba. Essas ligações curtas eram ocorrências comuns entre revolucionários.

Muito antes de se apaixonarem, Stálin e Nádia faziam parte da família bolchevique que passou pelo lar dos Allilúiev: Kalínin e Ienukidze, entre outros presentes àquele jantar de 1932. Havia outra ligação especial: pouco depois de conhecer os Allilúiev em Baku, Koba salvou Nádia de se afogar no mar Cáspio. Um laço romântico, se é que chegou a haver algum.

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